Há 135 anos, um golpe de Estado proclamou a República no Brasil, substituindo a monarquia por um novo regime que prometia justiça, liberdade e representatividade. A Proclamação da República ocorreu sem o apoio popular, guiada por interesses das elites agrárias e militares, que viam na transição uma oportunidade de reconfigurar o poder em benefício próprio. Sem grandes transformações para as massas, a monarquia de Dom Pedro II deu lugar a um governo republicano comandado inicialmente pelo Marechal Deodoro da Fonseca, e logo depois pelo Marechal Floriano Peixoto. Nos anos subsequentes, o Brasil experimentaria uma República oligárquica, ainda distante dos ideais democráticos e inclusivos que os republicanos almejavam.
Não estou, no entanto, a defender a monarquia; todavia é inegável a importância histórica e a figura de estadista de Dom Pedro II. Um homem que literalmente deu sua vida pelo Brasil, governando com dedicação, inteligência e visão. Em Imperador Cidadão, o historiador Roderick J. Barman reconstrói a vida desse monarca que assumiu o trono aos 15 anos, após anos de preparo e disciplina, carregando nos ombros a tarefa de liderar uma nação fragmentada e recém-independente. Dom Pedro II era, ao mesmo tempo, conservador e progressista. Um líder centralizador, que administrava com firmeza e controle, mas que também sonhava com um Brasil interligado por ferrovias, educado e industrializado. Seu governo promoveu avanços em infraestrutura e educação, trazendo o Brasil para mais perto dos ideais de modernidade que ele tanto admirava.
Essa visão de progresso, porém, coexistia com concessões às elites agrárias, especialmente aos cafeicultores, cujos interesses dominavam a economia nacional. José Murilo de Carvalho, um dos mais respeitados historiadores do Brasil, observou que Dom Pedro II era, acima de tudo, um “imperador cidadão”, mas suas prioridades nem sempre iam ao encontro das necessidades populares. Sua monarquia, embora progressista em vários aspectos, hesitou em enfrentar diretamente o poder dos latifundiários e perpetuou estruturas de dominação social e econômica.
A idade avançada e a saúde debilitada de Dom Pedro II contribuíram para o fim de seu reinado. Em 15 de novembro de 1889, ao receber, no Palácio Imperial de Petrópolis, o telegrama urgente de seu presidente do Conselho de Ministros, o Visconde de Ouro Preto, Dom Pedro II percebeu a gravidade da situação do motim militar que almejava destituir a monarquia. Manteve a calma e seguiu com sua rotina. Visitou a estação ferroviária, foi à catedral com sua esposa para uma missa e, após ler um novo telegrama de seu premiê, decidiu partir para o Rio de Janeiro. Durante todo o trajeto, o imperador manteve-se sereno, acreditando que a crise era apenas “fogo de palha”.
Outro fator importante foi a questão de sua sucessão. A Princesa Isabel, vista como excessivamente conservadora, fervorosamente religiosa e inábil para a política, era a herdeira direta. Barman a descreve como inadequada para o comando, e sua imagem pública, marcada pelo conservadorismo e pela relação com um estrangeiro – o Conde d’Eu –, aumentou a desconfiança das elites. Essa falta de apoio para uma sucessora viável acelerou o desejo de uma mudança de regime entre os militares e republicanos.
A deterioração do apoio ao regime monárquico foi agravada pela abolição da escravidão em 1888. A sanção da Lei Áurea por Isabel causou grande insatisfação entre os fazendeiros, que “dependiam da mão de obra escrava e viram seus lucros ameaçados”. Muitos latifundiários, outrora defensores do Império, passaram a apoiar a causa republicana ou, ao menos, tornaram-se indiferentes ao futuro do regime. A abolição, sem políticas compensatórias, deixou uma grande parcela da população negra em situação de abandono e exclusão, o que contribuiu para as tensões sociais e serviu como mais uma sombra sobre o fim da monarquia. Esse é, aliás, um trágico marco imperial. O Brasil deveria ter sido pioneiro e decretado o fim da escravatura muito antes.
Outro episódio que acelerou a queda do Império foi a progressiva militarização da política brasileira. A Guerra do Paraguai (1864-1870), liderada por Dom Pedro II, consolidou o Exército como uma força independente e politizada, marcando o início da interferência militar nos assuntos civis, algo que se tornaria frequente ao longo da história republicana do Brasil. O papel de figuras militares, como o Marechal Deodoro e Floriano Peixoto, foi decisivo na Proclamação da República, mas também evidenciou um problema estrutural que a República herdaria: a dificuldade de limitar a atuação das Forças Armadas na política nacional. O movimento republicano, que culminou na deposição de Dom Pedro II, teve menos a ver com um ideal democrático e mais com uma articulação de poder entre elites civis e militares.
Após ser deposto, Dom Pedro II partiu para o exílio na França, onde viveu em modéstia e exerceu atividades intelectuais, chegando a dar aulas e a se envolver em atividades acadêmicas. Ele faleceu em Paris, em 5 de dezembro de 1891, em um modesto quarto do Hotel Bedford, cercado de poucos amigos e da fiel lembrança de um Brasil que nunca deixou de amar. Em seu leito de morte, segurava um crucifixo, um presente do Papa, e descansava sobre um travesseiro com terra de todas as províncias brasileiras, simbolizando seu eterno vínculo com a nação que serviu até o fim. Sempre que visito Petrópolis, sinto-me compelido a homenageá-lo visitando o Museu Imperial, um dos museus mais importantes e emocionantes do Brasil. Ali, reverencio a memória de Dom Pedro II e relembro o legado complexo e contraditório desse imperador que dedicou sua vida ao país.
Celebrar a República é celebrar um ideal de justiça e cidadania. Mas é essencial lembrar que a República não foi construída do zero. Ela nasceu de um regime que, apesar de suas limitações, moldou o caráter político do Brasil. Dom Pedro II, com todas as suas virtudes e contradições, deixou um legado que influencia até hoje nossa cultura política. Sua visão de um Brasil moderno, embora incompleta, abriu caminhos e projetou sonhos que, por vezes, a República ainda luta para alcançar.
Ao relembrar esses 135 anos da Proclamação da República, é justo refletir sobre os erros e acertos de nossa história. Dom Pedro II, o imperador que se via como “primeiro cidadão”, governou com um compromisso inquestionável com o Brasil, mas também com limitações que refletiam o contexto de seu tempo.
Que a República se efetive com inclusão, liberdade e justiça social, mas sem apagar a memória de um homem que dedicou a vida ao país. Afinal, o verdadeiro progresso se faz com memória e com a capacidade de aprender com o passado – para que, um dia, o Brasil se torne, de fato, uma república de todos. Rememorar Dom Pedro II é fundamental para compreender os alicerces da nossa nação e projetar os desafios seculares que nos são legados.
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