A primeira vez que ouvi essa expressão, “síndrome da centopeia”, foi em um livro do escritor brasileiro Rubem Alves, onde ele descrevia brevemente o que era essa autossabotagem que a razão humana é capaz de realizar quando buscamos sistematizar o que agimos naturalmente. Muitos anos se passaram desde que li sobre a síndrome da centopeia em Rubem Alves, até que recentemente li sobre isso novamente, na obra do norueguês Jostein Gaarder. Desde então, me coloquei a pensar o que seria essa síndrome da centopeia em nossas vidas. Me propus a escrever a pequena fábula a seguir, para ilustrar a questão. Então, vamos lá!
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Certa vez, a joaninha havia organizado uma festa no jardim. Todos os insetos estavam em polvorosos, pois a atração principal seria uma apresentação da centopeia. Não havia inseto algum que dançasse tão bem quanto a centopeia. Era um sapateado digno de reconhecimento em todos os jardins. Os insetos ficavam ansiosos para assistir ao show da centopeia.
A festa da joaninha iria começar no início da noite e todos os insetos do jardim passaram o dia cheios de expectativas, comentando e imaginando como seria o show. Mas havia um inseto que não estava muito contente: era a formiga. Ela não gostava de assistir aos shows de dança da centopeia, achava um exibicionismo só! A formiga sempre quis aprender a dançar, mas as suas finas e desajeitadas patinhas não eram favoráveis à dança. Aquilo a incomodava, ao ponto de vir a criticar inúmeras vezes a centopeia com os outros insetos do jardim.
Mesmo assim, na hora marcada para a festa, a formiga estava lá. Ela resolveu até chegar um pouco mais cedo, na verdade. Queria esperar a centopeia chegar e ir falar com ela.
Quando a centopeia chegou, a formiga foi mais do que depressa até ela:
— Centopeia, centopeia!... Eu estou lhe esperando faz um bom tempo. Passei o dia todo pensando em algumas perguntas que gostaria de lhe fazer. Todos no jardim só falavam de você e do seu show de dança, então fiquei pensando algumas coisas...
— Sim, formiga, pode perguntar que eu lhe respondo.
— É que eu fiquei pensando como você sapateia graciosamente bem. Cada movimento das suas centenas de pernas é perfeitamente ordenado, o que faz da sua dança um espetáculo. Mas o que eu gostaria de saber é, como você faz isso? Quando você começa o seu sapateado, é a perna esquerda número 13 que levanta primeiro e em seguida a perna direita número 54? Ou é a 21ª perna esquerda que levanta primeiro, para depois levantar a 68ª perna direita? A centopeia, um pouco em choque com a pergunta da formiga, respondeu:
— Olha, formiga, este é um segredo que guardo comigo e não posso revelar a ninguém. Me desculpe!
A formiga, desapontada, saiu de perto da centopeia e se juntou aos outros insetos do jardim, para esperar o início da festa. Já a centopeia foi se preparar para o show de dança. Porém, ela estava visivelmente atordoada. É que a pergunta da formiga não foi uma pergunta qualquer. Por mais que a resposta da centopeia tenha demonstrado certa confiança e orgulho, a pergunta havia mexido com seus pensamentos.
Ela começou, então, a tentar racionalizar seus movimentos, tentando sistematizar a sua coreografia. A centopeia nunca havia parado para pensar qual era a sequência correta dos seus passos, qual era a perna correta a se levantar primeiro, e qual era a que deveria levantar na sequência, e qual era a outra e a outra e a outra...
Chegado a hora do show, enquanto todos os insetos do jardim esperavam, a joaninha foi chamar a centopeia e a encontrou completamente desfalecida. Ela permanecia parada, imóvel, não conseguia dar nem mais um passo com suas centenas de pernas miúdas. A joaninha perguntou o que estava acontecendo e a centopeia respondeu:
— Eu não sei o que está acontecendo comigo. Só sei que a formiga me fez uma pergunta e eu me coloquei a pensar. Desde então, não consigo mais dar um passo se quer. Fico apenas com a insistente pergunta da formiga martelando em minha mente. Qual perna devo mexer primeiro? Será a 6ª ou a 33ª ou ainda a 40ª? Eu não sei – dizia ela em desespero –, são tantas pernas que eu não consigo me decidir. Pode, por favor, cancelar o meu show?
A joaninha, vendo a situação da colega, avisou a todos que o show de dança da centopeia estava cancelado por motivos de força maior.
Todos os insetos do jardim, que criaram expectativas durante todo o dia, ficaram chateados, com exceção da formiga. Ninguém percebeu, mas a formiga havia ficado ligeiramente feliz com aquilo. Ela não demonstrava, mas por dentro estava satisfeita por não ter que ver aquele exibicionismo da centopeia, que, além de tudo, ainda era uma arrogante por nem ter respondido às suas perguntas.
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Essa pequena fábula traz lições muito importantes, mas vamos focar na lição que mais no interessa aqui, que é a síndrome da centopeia. A centopeia nunca havia parado para pensar como era a sua dança. Com as suas cem pernas ela bailava lindamente em suas apresentações, sem se preocupar com um procedimento racional ou um método de dança. Mas, ao deter seus pensamentos nisso, ela se vê extasiada, sem conseguir ao menos se mexer. A sua síndrome foi a paralisia motivada pela racionalização dos atos que antes eram naturais e autênticos. Rubem Alves escreveu que “o corpo não entende a linguagem do método. Métodos são procedimentos racionais. Mas o corpo é um ser musical”. De fato, a síndrome da centopeia é uma incongruência entre aquilo que ela fazia instintivamente e aquilo que se pretendeu metódico e sistematizado.
O autor norueguês Jostein Gaarder nos conta sobre a síndrome da centopeia no capítulo em que o personagem Alberto Knox dá uma aula sobre Sigmund Freud para sua jovem aluna, Sofia Amundsen. Ele a explica sobre a psique humana e as contribuições que a descoberta do inconsciente trouxe para o entendimento acerca do que é o homem. Para ficar mais claro, vamos explicar um pouco sobre tal contribuição na história das ideias.
Desde os naturalistas do século XIX a centralidade humana, como criatura especial na superfície da Terra, veio sendo colocada no escanteio. Freud contribuiu ainda mais com isso ao revelar a “vida instintiva” das pessoas, demonstrando que não é sempre a razão a responsável por reger nossas ações. Os homens não são seres tão racionais como pensamos. Na verdade, aquilo que chamamos de consciência é somente a ponta de um iceberg, que tem a sua maior parte submersa nas águas do oceano. Assim também é a mente humana: a consciência é apenas uma pequena parte, enquanto o subconsciente ou inconsciente, que fica nos porões da mente, diz respeito a aproximadamente 90% daquilo que somos.
Às vezes até nos auto enganamos, tentando racionalizar nossas ações provando para os outros e para nós mesmos que temos alguns motivos para agir de determinada maneira, quando na verdade os motivos reais são outros. E justamente porque esses motivos são incômodos ou constrangedores é que tentamos ocultá-los. Nos sonhos, por exemplo, é inevitável que esses motivos reais de nossas ações não venham a aparecer – mesmo que os sonhos sejam confusos e disformes. Os sonhos são assim porque há fortes mecanismos psicossociais de repressão que nos impedem de revelar a nós mesmos quem somos de verdade. As imagens oníricas, que as vezes até parecem filmes e vídeos que assistimos ao sonhar, são conteúdos manifestos na mente humana que possuem significados profundos, ocultos à consciência, mas tão reais quanto uma expressão matemática.
Assumir que a maior parte daquilo que somos não está a luz da nossa consciência trouxe uma mudança de perspectiva importante. Geralmente, aquilo que acreditamos acerca do que somos não passa de uma narrativa construída como quem constrói um personagem para atuar no grande teatro do mundo. Essa realidade submersa tornou-se algo precioso no âmbito das artes, da música, da literatura, da filosofia, entre tantas outras áreas do saber humano. O homem entendeu que não tinha domínio sobre quase nada, nem sobre si mesmo. Todavia, isso não era mau. Pessoas passaram a explorar cada vez mais essas verdades submersas e a valorizá-las como aquilo que realmente importa. Ao longo do século XX houveram diferentes indivíduos e até grupos inteiros de pessoas que buscaram acessar essas verdades submersas, como o movimento artístico e literário do surrealismo, ou o próprio movimento hippie, em suas diferentes expressões psicodélicas, além do cinema hollywoodiano que cada vez mais passou a explorar o tema do inconsciente em seus roteiros. Neste âmbito, a racionalidade ganhou outro significado, sendo encarada como uma superficialidade e não o lugar por excelência da vida psíquica. Como escreveu Jostein Gaarder: “[…] as fantasias são sufocadas pela racionalidade dos pensamentos. Para um artista pode ser fundamental ‘soltar-se das amarras’ da racionalidade”.
Um escritor, por exemplo, começa sua obra reunindo seus fichamentos, anotações e rascunhos acerca do tema que pretende discutir. Ele começa a organizar e a separar tudo, ordenando seus pensamentos. Mas, quando o escritor passa a pensar mais no estilo, na linguagem e nas regras da escrita, ele trava automaticamente sua criatividade e então entra a síndrome da centopeia. Assim escreveu Rubem Alves sobre a sua experiencia de escritor: “As ideias do eu pensante são aves engaioladas – pertencem ao que faz com elas o que deseja. As ideias que moram no corpo são aves
selvagens – só vêm quando desejam. Elas têm vontades e ideias próprias”.
A síndrome da centopeia é esse estado de dependência da consciência. Trata-se de uma autossabotagem da própria razão. A razão é controladora, dominante, quer ter poder sobre tudo. Mas sabemos que a vida, em sua potência infinita, é muito maior do que aquilo que a razão pode alcançar. Tudo que é vivo na natureza sabe exatamente aquilo que deve saber. A aranha nunca precisou que alguém a ensinasse a tecer sua teia, as vacas nunca precisaram aprender a produzir leite, o joão-de-barro nunca precisou fazer um curso para construir sua casa. Eles simplesmente sabem. Apenas nós, humanos, buscamos racionalizar tudo e acabamos, muitas vezes, aprisionando o que temos em maior potencial. Ora, são inúmeras as pessoas que tem dificuldades de tomarem decisões porque racionalizam tudo, ficam ansiosas, cheias de medos e inseguranças, acabando por ver a vida passar diante dos seus olhos. Isso é também a síndrome da centopeia.
Existem potenciais que são só nossos, os quais sempre o soubemos, sem a necessidade de métodos e sistematizações. Precisamos estar atentos para não agir como a centopeia da fábula. O mundo moderno-industrial-tecnológico-contemporâneo nos cobra o máximo de racionalização, rotinas, cumprimento de metas, datas, programas de tarefas, etc. É o mundo que a formiga invejosa apresentou à centopeia. É um mundo que, entre tantas coisas, nos leva a inúmeras autossabotagens, onde decidimos viver a vida de acordo com padrões pré-estabelecidos, seguindo um cronograma, como se a autorrealização na vida estivesse em uma receita de bolo. Na Internet está lotado de gente assim, coaches, mentores, gurus e autores de autoajuda que prometem vidas pré-programadas, como se tudo estivesse descrito em um grande manual.
Lembro-me de Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas, que nos alerta dizendo: “Viver é muito perigoso. […] Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. […] Travessia perigosa, mas é a da vida”.
A intuição dos sábios orientais, sem dúvidas, tem muito a nos ensinar acerca das complexidades humanas. Para o sábio chines Lao-Tsé, que viveu no século VI antes de Cristo, a autorrealização é fruto do esvaziamento da consciência, quando de fato conseguimos estar em comunhão com a natureza. Ele dizia que “um bom viajante não tem planos fixos e não está determinado a chegar”, o que quer dizer que a vida é uma grande incerteza e melhor caminha por ela quem está preparado para enfrentar as adversidades, sem se apegar a métodos e ideias fixas. Para finalizar, tomo a liberdade de citar um poema de Fernando Pessoa, sob o pseudónimo de Álvaro de Campos, que diz assim:
“Às vezes tenho ideias, felizes,
Ideias subitamente felizes, em ideias
E nas palavras em que naturalmente se despejam...
Depois de escrever, leio...
Porque escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...”
Excepcional e inspiradora reflexão!