Quase sempre, logo após o término das eleições, analistas políticos recorrem à expressão “a voz que vem das urnas” para interpretar os rumos escolhidos pelo eleitorado. Neste artigo, proponho refletir sobre a voz que não veio das urnas — aquilo que os eleitores deixaram de dizer ao optarem pela abstenção. O que podemos aprender com esse silêncio?
A abstenção elevada de 29,26% no segundo turno das eleições municipais de 2024 expõe uma grave fratura na democracia brasileira. Esse índice, o segundo mais alto desde o ano 2000, revela mais do que uma simples desmotivação eleitoral; demonstra uma profunda crise de representatividade e um desencanto generalizado com o sistema político.
Em capitais como Porto Alegre, Goiânia e Belo Horizonte, as taxas de abstenção foram superiores a 30%, evidenciando que a democracia, em sua vertente de escolha e participação, distancia-se de parcelas significativas da população. Esse distanciamento, no entanto, é apenas o sintoma de uma falha estrutural: a incapacidade das instituições políticas (sobretudo os partidos) de se renovarem e se adaptarem às novas demandas sociais, de transparência e de efetiva representatividade.
Adam Przeworski, em sua análise das crises democráticas, pontua que a democracia pode ser vista sob duas lentes: a minimalista, que a entende como o direito dos cidadãos de escolherem seus governantes, e a maximalista, que acrescenta valores como igualdade, justiça e participação genuína. No Brasil, esse valor maximalista parece ter sido esvaziado ao longo das décadas, pois o processo democrático tem se resumido à formalidade do voto, sem mudanças estruturais que atendam aos novos anseios da sociedade. Isso possibilita, inclusive, o fortalecimento de discursos autoritários, que se aproveitam da desilusão popular para promover soluções simplistas e discursos populistas, minando a confiança nas instituições - um diagnóstico compartilhado por diversas nações.
Para além do desencanto, a fragilidade da democracia brasileira é intensificada pelo avanço das fake news e da manipulação da informação, que distorcem o processo de tomada de decisão e alienam o eleitorado. A profusão de notícias falsas e desinformação corrói a confiança no sistema e aprofunda a polarização, dificultando o diálogo e o consenso, que são fundamentais para a saúde democrática. Em tempos de redes sociais e comunicação digital, o controle sobre a veracidade das informações se tornou uma das batalhas mais urgentes para proteger a democracia e o próprio senso de civilidade. Sem uma política pública eficaz de combate à desinformação e à manipulação, corremos o risco de perpetuar uma democracia apenas formal, refém de mentiras, na qual o poder se torna acessível a quem melhor manipula os fatos.
Neste contexto, é que surge a necessidade de uma reinvenção da democracia brasileira, um esforço coordenado e multifacetado para resgatar a legitimidade do sistema e restaurar a confiança da sociedade nas instituições. Esse processo passa, primeiramente, pela democratização da própria democracia, ampliando os canais de participação e permitindo que o cidadão seja parte ativa do processo político, e não apenas um votante eventual. Iniciativas como o orçamento participativo digital, assembleias comunitárias, plebiscitos e referendos sobre temas relevantes podem ajudar a promover uma democracia mais horizontal e conectada às reais necessidades da sociedade. Como Przeworski adverte, tais medidas, podem ser até consideradas paliativas, mas representam passos importantes para aproximar as instituições políticas da sociedade.
Outro ponto essencial é o combate eficaz à desinformação, uma ameaça silenciosa e corrosiva à democracia. Em um ambiente caracterizado pela circulação célere das fake news, a verdade quase se esvai e se torna apenas mais uma entre múltiplas narrativas, assim democracia é corroída sistematicamente. É urgente criar políticas robustas de regulação e promover uma educação midiática, conscientizando a população para o uso crítico das informações. Parcerias com plataformas digitais e mecanismos de checagem de fatos em tempo real podem contribuir para reduzir o impacto das fake news, mas é fundamental que essa conscientização comece cedo. Integrar o combate à desinformação ao sistema educacional brasileiro, promovendo a alfabetização midiática desde os primeiros anos escolares, é um passo decisivo para formar cidadãos menos vulneráveis a discursos manipuladores.
Reinventar a democracia no Brasil implica, também, um projeto nacional que contemple todos os brasileiros, sem deixar ninguém para trás. Esse projeto deve ir além da mera representatividade formal e alcançar a justiça social de modo efetivo. Uma democracia robusta não pode se contentar em ser apenas um sistema de escolha; ela deve ser uma plataforma que acolhe a diversidade de vozes e interesses em uma sociedade tão plural quanto a brasileira. Przeworski nos lembra que a verdadeira democracia requer a inclusão genuína e a renovação de lideranças, especialmente dentro dos próprios partidos políticos, para evitar que se transformem em oligarquias distantes dos interesses populares. Apenas com partidos renovados, abertos à diversidade e com lideranças representativas é possível evitar o desencanto e o distanciamento do cidadão comum.
Contudo, não basta expandir a participação; é fundamental construir um projeto de país que promova o desenvolvimento econômico com justiça social e crie oportunidades reais para todos. O Brasil precisa romper com o atraso e buscar uma prosperidade que seja compartilhada, no qual a tecnologia e a infraestrutura sejam motores de progresso e melhoria na ambiência de negócios.
Um país que investe em inovação e na modernização de suas estruturas econômicas é um país que gera empregos, promove a inclusão produtiva e oferece ao cidadão a sensação de pertencer a um lugar que tem rumo, que inclui e proporciona oportunidades. Não admitir a pobreza e a exclusão deve ser o norte desse projeto, pois esses são os maiores preconceitos que uma sociedade que se juiz democrática pode carregar. Em uma nação que valoriza a igualdade, a erradicação da miséria e da marginalização não é um ato de caridade, mas de justiça democrática.
Ademais, a democracia brasileira precisa se conectar integralmente com os valores de transparência e responsabilidade. Em um contexto marcado pelo personalismo e pela corrupção, é vital que haja mecanismos rigorosos de fiscalização e punição para conquistar a confiança pública A criação de uma cultura de prestação de contas contínua com governantes e gestores públicos responsabilizados por suas ações, não é somente uma questão de justiça, mas o fundamento da legitimidade democrática.
Qualquer reinvenção democrática exige também uma mudança cultural estrutural: o engajamento cívico precisa ser valorizado, e o conjunto da sociedade precisa perceber que a sua participação é essencial para transformar realidades e moldar o futuro. A responsabilidade democrática deve ser tanto do governante quanto do governado.
Finalmente, para que a democracia brasileira floresça, é necessário que ela abrace os valores que sustentam uma sociedade justa. Isso implica enfrentar as desigualdades estruturais que limitam a prosperidade de muitos e privilegiam poucos. A democracia maximalista, descrita por Przeworski, não é apenas sobre liberdade de escolha, mas sobre construir uma sociedade em que todos tenham acesso a condições dignas de vida, com educação, saúde, moradia e oportunidade. Uma democracia que incorpora esses valores deixa de ser apenas um sistema de governo e se torna um verdadeiro meio de transformação social. Ela permite que todos, independentemente de origem ou condição, sintam que têm um lugar e uma voz em um país que busca o progresso para todos.
O Brasil e o mundo enfrentam uma encruzilhada histórica. Como Przeworski observa, defender a democracia exige mais do que resistir às forças autoritárias; é necessário um projeto positivo, voltado para o futuro, que recupere a fé das pessoas no sistema e integre a sociedade em um projeto coletivo de país. esse projeto deve promover uma democracia inclusiva, transparente e justa, onde o progresso não seja privilégio de poucos, mas um direito compartilhado por todos. Para superar o desencanto e o desengajamento, é essencial que cada cidadão sinta que sua participação é valorizada e que suas necessidades são levadas em consideração. Uma democracia que se reinventa é aquela que oferece um projeto de país que inclui a todos, gerando oportunidades reais e promovendo a igualdade de condições.
Essa reinvenção exige coragem para enfrentar as desigualdades estruturais e um compromisso inabalável com a construção de um ambiente de negócios próspero e sustentável, que impulsione o crescimento sem perder de vista a justiça social. Investir em infraestrutura moderna, em políticas de inclusão digital e em educação de qualidade é vital para garantir que o Brasil não apenas acompanhe o ritmo do mundo, mas que se torne um país onde todos possam prosperar. Esse é o caminho para um Brasil onde a pobreza e a exclusão sejam tratadas como problemas a serem erradicados, não como meros dados estatísticos ou consequências inevitáveis.
Assim, ao traçar um projeto democrático que combine desenvolvimento econômico com inclusão social, estamos, na verdade, construindo uma nação onde cada indivíduo se sinta parte de algo maior, um país que se preocupa com o bem-estar coletivo e com a dignidade de todos. Somente com um projeto nacional ambicioso, que leve em conta as demandas da modernidade — como a tecnologia, a infraestrutura e a competitividade econômica —, mas sem abrir mão da justiça e da equidade, será possível transformar o Brasil em uma democracia vibrante, onde a sensação de pertencimento e a confiança no futuro estejam ao alcance de todos.
A democracia brasileira precisa se expandir para além das urnas e se tornar uma prática cotidiana de inclusão e progresso. Esse é o grande desafio que temos diante de nós: construir uma democracia que vá além das formalidades e se transforme em um instrumento genuíno de desenvolvimento e justiça.
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