A crise habitacional é um problema global que atinge várias partes do mundo, e os países da Europa não estão imunes a essa realidade preocupante. Com quase um milhão de pessoas em situação de rua, essa crise tornou-se ainda mais urgente nos últimos anos. Entre 2010 e 2023, os preços das residências na União Europeia aumentaram em 48%, enquanto os aluguéis tiveram um incremento de 22%, tornando a habitação inacessível para muitos (Eurostat, 2023).
Esse aumento nos preços das moradias, agravado pela pandemia e pela elevação da inflação, tem contribuído diretamente para o aumento do número de desabrigados, criando uma situação em que muitos simplesmente não conseguem encontrar um lugar para morar. Na França, por exemplo, o número de pessoas sem-teto mais que dobrou na última década, um sinal alarmante de uma crise que está longe de ser resolvida.
Porém, em meio a essa preocupante realidade, surge um exemplo a ser analisado: a Finlândia. Conhecida como o "modelo finlandês", o país adotou uma abordagem inovadora que praticamente eliminou o número de pessoas em situação de rua. Um projeto pioneiro proporcionou apartamentos para 60% dos desabrigados, resultando em uma queda impressionante no número de pessoas sem-teto, de 20 mil nos anos 80 para 3.600 atualmente. O objetivo ambicioso do presidente finlandês, Alexander Stubb, é eliminar completamente essa estatística até 2027.
A abordagem finlandesa ressalta a importância de priorizar políticas habitacionais eficazes e do compromisso do governo em enfrentar a crise de moradia. A experiência da Finlândia demonstra claramente a necessidade de um projeto de médio prazo ao lidar com programas habitacionais. É evidente que outros países podem se beneficiar desse exemplo, incluindo o Brasil. No entanto, é importante reconhecer as diferenças significativas entre os contextos brasileiro e finlandês. O Brasil possui uma população muito maior que a da Finlândia (cujo número de habitantes se assemelha à Região Metropolitana de Belo Horizonte), o que demanda abordagens adaptadas e estratégias específicas para cada realidade.
Falando em Brasil, o fato é que ainda enfrentamos desafios significativos em relação à habitação. Segundo dados recentemente divulgados pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic), o país enfrenta um déficit habitacional considerável, que exigiria investimentos massivos para ser resolvido. São necessários cerca de R$ 1,97 trilhão até 2033 para atender à demanda por moradias, uma cifra impressionante e que reflete a magnitude do desafio que enfrentamos. Se fosse zerar déficit de moradias neste momento, o governo precisaria de cerca de R$ 1 trilhão.
Os recursos disponíveis estão longe de serem suficientes para enfrentar essa crise. Comparando os investimentos necessários com os recursos anunciados para o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), há um hiato de cerca de meio trilhão de reais. Isso ressalta a urgência de um esforço conjunto do setor público e privado para encontrar soluções viáveis e acessíveis para a população que enfrenta dificuldades de acesso à moradia digna, além de incluir na pauta política a necessidade imperiosa de uma ampla reforma urbana capaz de enfrentar as consequências de nosso histórico modelo de desenvolvimento urbano com alta concentração de terra e grande parte da população marginalizada.
O direito à moradia é fundamental para a dignidade humana, e é responsabilidade do Estado brasileiro garantir que todos tenham acesso a ele. Não se pode ignorar a negligência histórica em relação à formulação e implementação de políticas públicas efetivas na área habitacional. A ausência de investimentos adequados e de uma visão estratégica resultou em um agravamento progressivo da crise, deixando milhões de brasileiros à margem do direito básico à moradia digna.
Apesar dos impactos positivos observados com o Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), que se consolidou não apenas como uma intenção, mas sim como um programa eficaz no enfrentamento da histórica crise habitacional brasileira, é inegável que o desafio em questão é de uma magnitude que transcende a capacidade de solução exclusiva por meio de políticas públicas de um único governo. A questão habitacional necessita ser encarada como uma prioridade do Estado brasileiro como um todo, conforme já previsto no texto constitucional há mais de 20 anos.
Consagrado pela Constituição Federal de 1988, o direito à moradia é uma atribuição compartilhada entre a União, os estados e os municípios. Segundo o texto constitucional, cabe a eles "promover programas de construção de moradias e aprimorar as condições habitacionais e de saneamento básico". Essa responsabilidade foi reforçada pela Emenda Constitucional n° 26/2000, que incluiu a moradia no rol dos direitos sociais.
Enquanto se deve celebrar os avanços conquistados e reconhecer os esforços empreendidos, é importante também manter um olhar crítico sobre o passado recente, aprendendo com os erros cometidos visando construir um futuro mais justo e inclusivo. Redefinir os padrões de acesso à moradia e garantir que todos os cidadãos tenham um lar onde possam prosperar com dignidade e segurança não é nada mais do que cumprir com o desiderato constitucional.
Referências
Visão. Há quase um milhão de europeus sem abrigo; Portugal ocupa o sexto lugar no ranking dos que moram na rua. 06 de setembro de 2023. Disponível em: https://visao.pt/atualidade/sociedade/2023-09-06-ha-quase-um-milhao-de-europeus-sem-abrigo-portugal-ocupa-o-sexto-lugar-no-ranking-dos-que-moram-na-rua/. Acesso em: 05 de abril de 2024.
SPIEGEL. A paradigm shift in social policy: How Finland conquered homelessness. Disponível em: https://www.spiegel.de/international/europe/a-paradigm-shift-in-social-policy-how-finland-conquered-homelessness-a-ba1a531e-8129-4c71-94fc-7268c5b109d9. Acesso em: 05 de abril de 2024.
RFI. Europa registra quase um milhão de pessoas dormindo nas ruas, aponta relatório. 05 de setembro de 2023. Disponível em: https://www.rfi.fr/br/europa/20230905-europa-registra-quase-um-milh%C3%A3o-de-pessoas-dormindo-nas-ruas-aponta-relat%C3%B3rio. Acesso em: 05 de abril de 2024.
Terra. Brasil precisará de quase R$2 tri para zerar déficit habitacional em 10 anos, diz CBIC. Disponível em: https://www.terra.com.br/economia/brasil-precisara-de-quase-r2-tri-para-zerar-deficit-habitacional-em-10-anos-diz-cbic,bfae1a24a07d7cc502ad572e6dcfcc42a8l4j0wv.html. Acesso em: 05 de abril de 2024.
Eurostat. Housing 2023 [recurso eletrônico]. Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/web/interactive-publications/housing-2023. Acesso em 05 de abril de 2024.
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