Na segunda parte da entrevista com o sociólogo itaguarense Gilson Lima, são abordadas questões fundamentais sobre políticas públicas e a realidade política do Brasil, de Minas Gerais e de Itaguara.
A ascensão da extrema direita, programas sociais e a polarização também são temas abordados.
Confira:
SN - Sua dissertação de mestrado abordou as políticas de transferência de renda no Brasil, comparando o Bolsa Família e o Auxílio Brasil. Pode compartilhar suas conclusões e principais insights dessa pesquisa?
Gílson - A dissertação teve como objetivo estudar os programas de transferência de renda como Bolsa Família e o Auxílio Brasil, onde pude aprofundar a reflexão acerca do assunto e compreender os fatores que agravaram e/ou se mostraram insuficientes no combate à pobreza no Brasil, nos últimos anos. Ao comparar as normas e regras dos dois programas, pude constatar que as alterações ocorridas no desenho foram residuais, nos últimos anos, se concentrando basicamente na atualização dos valores e na inclusão dos novos benefícios. Porém, a evolução dos indicadores de desigualdade e pobreza, no Brasil e nos estados, e a evolução do percentual de pobres ao longo de período de 2012 a 2021 evidenciaram que as políticas de transferência de renda não foram suficientes para mitigar os efeitos da crise econômica pós pandêmica do Covid/19. E essa insuficiência ocorreu tanto pela demora da atuação do Governo, na alocação de recursos e na atualização dos valores, quanto pela falta de uma melhor coordenação junto aos Estados e Munícipios, a fim de possibilitar a inclusão da população necessitada não contemplada nos programas.
Além disso, ao discorrer sobre os temas e discussões colocadas nos últimos meses de 2022, no tocante à equidade na distribuição dos recursos, principalmente quanto à criação de um valor de piso mínimo para as famílias, e de tornar elegíveis inclusive as famílias unipessoais em situação de extrema pobreza, o programa acabou por estimular o desmembramento e a inclusão de famílias com um único membro. Como consequência disso, houve a deterioração na qualidade das informações do CadÚnico e inconsistências no pagamento a milhões de famílias brasileiras. Fatos esses que reforçavam, à época, a necessidade de revisão no desenho do programa Auxílio Brasil e de uma melhor gestão, na alocação dos recursos, na atualização dos cadastros e condicionalidades, na inclusão da população necessitada não contemplada, e na exclusão daquelas famílias não elegíveis.
Como insights e aprendizados, destacamos a necessidade constante de revisão contínua do desenho e da implementação das políticas públicas, devido ao dinamismo e comportamento da própria população beneficiária. Além disso, é crucial uma melhor coordenação, principalmente das políticas de alcance nacional, como é o caso das políticas de combate à miséria e à fome.
SN - Em relação aos programas de transferência de renda, qual é a importância deles na redução das desigualdades no Brasil? Como enfrentar os argumentos contrários que defendem o ensino da pesca em vez de dar o peixe?
A maioria dos estudos relativos aos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, corrobora a importância desses programas na redução das desigualdades. Quando falamos do combate à fome e à miséria, essa talvez seja a política pública mais eficaz, e amplamente difundida em vários países do mundo, seja nas políticas condicionadas, como é o caso de Bolsa Família, ou não.
Contudo, é importante ressaltar que o problema da desigualdade é bem mais amplo e complexo e envolve questões estruturais, como crescimento econômico, educação, qualificação profissional, tributação e geração de emprego e renda. Embora as políticas de transferências auxiliem e muito no combate à fome e à miséria, elas não são suficientes para enfrentar as desigualdades, por si só. Podemos, portanto, conviver com níveis de desigualdade elevados e não conseguirmos abordar outras frentes mais estruturais como as citadas acima.
Quanto aos argumentos contrários, que defendem o ensino da pesca em vez de dar peixe, como mencionou, acredito que seja uma discussão superada, pelo menos, no âmbito acadêmico e governamental. Pois não podemos entendê-las de forma isolada, uma vez que as políticas públicas são cíclicas e devem ser pensadas de forma complementar e a longo prazo.
Para termos uma ideia, apesar dos avanços no valor do programa de transferência de renda, como o aumento do benefício, em dezembro/2022 o percentual de pessoas em situação de pobreza, segundo o IBGE, ficou em 31,6% da população, enquanto a proporção de pessoas em extrema pobreza abrange 5,9%, neste período. Isso é mais de um 1/3 da nossa população! O que é ultrajante para aqueles que defendem apenas ações estruturais. Como bem disse o sociólogo Hebert de Souza, o Betinho, “quem tem fome, tem pressa”, ou seja, quer ações urgentes, para hoje! E é papel constitucional dos governos, prover ações de combate à fome e à miséria.
SN - No contexto de Minas Gerais, como avalia o governo de Zema? Ele é verdadeiramente um gestor ou isso é apenas uma narrativa bem-sucedida?
Na minha visão trata-se mais de uma narrativa bem-sucedida e equivocada de negação da política, que ocorreu na esteira das manifestações de 2013 e teve o seu ápice nas eleições de 2018. Um bom exemplo disso foi o seu posicionamento recente a respeito da não obrigatoriedade do cartão de vacina pelos estabelecimentos de ensino, o que, a meu ver, é totalmente absurdo, por se tratar de uma política consolidada há décadas e que tem como objetivo incentivar as famílias a prevenir os seus filhos de doenças comuns no passado e que hoje encontram-se controladas ou erradicadas. Outro ponto, utilizando esse mesmo exemplo, pode ser que seja uma estratégia populista de se posicionar como uma liderança da direita, com vistas às eleições de 2026. Porém, para um candidato que se coloca como gestor e liderança de um partido que se diz Novo, esse é um argumento que também não se sustenta, só reforça a narrativa oportunista de um político sem responsabilidade com as consequências de sua fala e com as políticas públicas concretas.
SN - Você acredita que o Brasil já teve uma direita autêntica e democrática? Como interpreta a ascensão da extrema-direita no país e quais medidas sugere para a recuperação do espaço pela direita clássica?
Gílson - Pode ser que sim. Até porque uma parcela significativa da população brasileira se denomina conservadora tanto no que se refere às pautas econômicas e liberais, quanto às pautas ditas de costume. E esse é um ponto interessante, pois um conservador liberal não necessariamente compactua com as pautas conservadoras de costume e vice-versa. Além disso, tivemos um longo de período de convivência democrática, período que vai desde o pós-redemocratização, a partir de 1985 até o período recente.
O cenário mudou a partir de 2013-15, e se acentuou com impeachment da Presidente Dilma e posteriormente com a eleição do Governo Bolsonaro, quando se iniciou uma série de questionamentos às urnas, aos demais poderes constituídos, em especial ao Supremo Tribunal Federal, o desmonte de várias políticas públicas existentes e o discurso de ódio e de desinformação. Culminando com a tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023, em apuração pelo Judiciário. Outro ponto importante a se destacar é que sempre tivemos uma direita presente no Brasil e esse viés autoritário não é novidade, como você bem abordou em seu livro, Neoliberalismo Autoritário - a racionalidade que gerou o bolsonarismo.
Ao olharmos para a nossa história, podemos perceber alguns exemplos disso, como a Ação Integralista, nas décadas de 1930-40 e os movimentos organizados como o IPES Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e o IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática, que atuaram fortemente a favor do Golpe de 1964 e deram sustentação, em conjunto com partidos de direita, aos governos militares no período de 1964 a 1985. Portanto, não é algo novo, talvez estivessem de certa forma adormecidas no período pós-democratização e ganharam força com a ascendência da extrema direita mundial, como temos visto nos EUA e na Europa.
Quanto às medidas para resgatar a direita clássica e democrática, isso passa, no âmbito nacional, necessariamente, pela apuração e punição daqueles que conspiraram contra a democracia brasileira no início de 2023. Se desejamos e prezamos por uma democracia sólida, inclusiva e participativa, não podemos ser complacentes com aqueles que se conspiraram a favor do golpe.
SN - Quanto à polarização entre bolsonaristas e petistas, acha que o Brasil pode superar essa divisão no futuro?
Gílson - Essa é uma excelente pergunta e pode ser vista de várias formas. Uma delas, sob uma perspectiva temporal, pode ser percebida como algo natural da política, como exemplo, a polarização entre PT e PSDB, que perdurou por praticamente 20 anos, de 1994 até 2014. E, que apesar de todas as divergências, essa polarização propiciou vários avanços, tanto na economia, quanto na sociedade como um todo, findando no pós-jornadas de 2013, Lava Jato e o golpe de 2015. A partir daí, vimos a ascensão da extrema direita, com a eleição do Presidente Bolsonaro, o aumento dos partidos de direita e de sustentação a essa extrema direita e à diminuição dos partidos mais ao centro do espectro político, principalmente o PSDB que teve uma redução expressiva tanto nos cargos do executivo quanto do legislativo.
Nessa perspectiva, o mais grave, a meu ver, é que enquanto a polarização se deu entre partidos que respeitavam as regras democráticas, o problema ficava circunscrito à disputa eleitoral. Entretanto, o que presenciamos no período pós- 2015 foi um discurso antipolítica, autoritário, e um governo de desmonte nas várias áreas, como cultura, educação, meio ambiente, entre outras. Culminando, como mencionado anteriormente, com o questionamento das urnas eletrônicas, do pleito de 2022 e com a tentativa de golpe, que está em apuração pelo STF. E os desdobramentos dessa polarização se darão muito em cima do resultado do processo jurídico em curso, da eventual inelegibilidade do ex-presidente Bolsonaro, além da visão de mundo que desejamos para as próximas eleições. Ou seja, teremos que decidir se queremos governos e partidos comprometidos com a democracia e o respeito à diversidade ou se pretendemos flertar com autoritarismo e o desmonte da política como local de discussão e opiniões divergentes.
Outra abordagem à polarização entre Lula e Bolsonaro, remete-se à própria característica de líderes carismáticos, tão típicos da nossa política brasileira. Nesse ponto, tanto a inelegibilidade do ex-presidente Bolsonaro, quanto à própria idade avançada do presidente Lula trarão enormes desafios para partidos em substitui-los, nos próximos anos. Tanto para a direita, que precisa encontrar um substituto para o ex-presidente Bolsonaro, quanto para o PT, que carece encontrar um líder com o mesmo carisma e estatura política do Presidente Lula, que se consolidou como uma das maiores lideranças políticas dos últimos 40-50 anos.
SN - A polarização política tem causado divisões nas famílias, inclusive em Itaguara. Você vê essa situação como irreversível ou acredita em um retorno à convivência pacífica, independentemente das diferenças políticas?
Gílson - Acredito que vivemos um período muito particular da nossa história, principalmente no que concerne aos meios de comunicação e à sua distribuição na sociedade. Antigamente, existiam muitos filtros e a comunicação era mediada pelos meios de comunicação como jornais, revistas, TV, rádio... No entanto, hoje, com o advento da internet e das mídias sociais, a comunicação se tornou muito mais fluída, difusa e de fácil propagação. Isso é positivo do ponto de vista da democratização da informação.
Contudo, o que temos visto, atualmente, é que, apesar da facilidade de propagação, as mídias sociais também facilitaram o fluxo de notícias falsas. Grande parte das pessoas, no afã de compartilhar a notícia, contribui para disseminação dessas informações falsas, criando-se um caldo de notícias inverídicas ou parcialmente verdadeiras. Isso acaba gerando um sentimento de intolerância muito grande, no qual as pessoas se apegam a informações parciais ou falsas para reforçar os seus argumentos. Dito isso, acredito que sim, é possível termos uma convivência pacífica, independentemente das nossas posições políticas.
No entanto, precisamos avançar em alguns pontos, como um maior regramento dos meios de comunicação, especialmente, das mídias sociais, questão essa que já está na pauta do Congresso e deve voltar a ser discutida e votada ainda esse ano. Além disso, é fundamental que as pessoas tenham o cuidado de pesquisar sobre aquilo que estão transmitindo, buscando constantemente maior tolerância, respeito às individualidades, empatia e convivência mútua.
SN - Para concluir, quais são suas perspectivas para o Brasil e Itaguara nos próximos anos? Como enxerga os desafios e oportunidades que se apresentam?
Gílson - Acredito que o último ano foi muito positivo e que há perspectivas, igualmente positivas para o futuro. Apesar dos grandes desafios, especialmente no que se refere às questões relacionadas à desigualdade e à consequente necessidade de investimentos nas regiões mais distantes e desassistidas, como Norte e Nordeste, que possuem os piores indicadores de desenvolvimento humano, juntamente com as periferias das grandes cidades. Do ponto de vista econômico, o crescimento de 2022 foi maior que o previsto pelos analistas e há uma previsão positiva, para os próximos anos, o que pode proporcionar um aumento da renda média dos brasileiros, conjugado com uma inflação controlada e uma geração de emprego dentro dos patamares aceitáveis.
Quanto à formulação de políticas públicas e ambiente democrático, observamos uma volta da normalidade institucional, com um país inserido no ambiente internacional e as instituições e o Governo Federal voltando a priorizar temas que ficaram negligenciados nos últimos anos, como a cultura, o meio ambiente e os direitos humanos, sem perder o foco nas políticas púbicas prioritárias para população como, emprego, renda, combate à fome, segurança, saúde e educação. Já em relação a Itaguara, acredito que é um reflexo do nosso país e devemos entender a política como fruto das nossas escolhas.
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