No Dia Internacional da Mulher, o Sagarana Notícias publica uma entrevista inédita com a escritora e poeta itaguarense Neusa Sorrenti, autora de mais de 40 livros e reconhecida nacionalmente na seara da literatura infanto-juvenil
Mensalmente, o Sagarana Notícias (SN) traz uma entrevista especial para as nossas leitoras e os nossos leitores. A entrevistada deste mês de março é a celebrada escritora itaguarense Neusa Sorrenti.
Filha de Antônio Sorrenti e de Cecília Michetti Sorrenti, Neusa nasceu no dia 29 de maio de 1948 em Itaguara.
Bacharelou-se em Letras pela PUC-Minas e em Ciência da Informação pela UFMG, possui pós-graduação em Literatura Infantil e Juvenil e mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa (Africana Brasileira e Portuguesa) pela PUC Minas. Em seu mestrado abordou o poeta gaúcho Mário Quintana e sua dissertação intitula-se: “Voz de criança na lírica de Mario Quintana”.
A escritora itaguarense já escreveu mais de 40 livros e figura como uma das mais importantes escritoras do gênero infanto-juvenil do país. Como reconhecimento de seu trabalho, venceu inúmeros prêmios e recebeu várias menções honrosas, dentre elas: o selo Altamente Recomendável do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), e o Prêmio 30 anos da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
A renomada editora Lê qualifica Sorrenti como “uma das maiores narradoras e poetas infantojuvenis do Brasil. A autora é a prova de como é amplo esse campo da literatura.”
Em alguns momentos, entrevistamos a escritora, em outros momentos falamos com a itaguarense e, por vezes, dialogamos com a mestra e especialista em literatura. Porque Neusa é assim: genial, múltipla.
Onde há a sigla SN, leia-se Sagarana Notícias e onde há a sigla NS, leia-se Neusa Sorrenti.
Aprecie a nossa conversa:
SN - Quando e como você começou a escrever? E quando veio o reconhecimento?
NS - Sempre gostei de escrever. Em cadernos secretos, folhas avulsas, cadernetas. Bem menina me aventurei numa parede recém pintada de uma varanda, usando folhas de gerânio como caneta. A façanha me custou uma advertência memorável. Mas o poema visual que criei tinha futuro...
Meu primeiro livro, Casamento de viúva nasceu numa oficina que eu ministrava para professoras auxiliares de biblioteca, quando eu trabalhava como Analista de Cultura na Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais. Bons tempos! Um editor viu meu texto, gostou, publicou. Assim, em 1993, me tornei autora e meu livro conheceu os primeiros leitores. Há exatos trinta anos. “O tempo é um sopro”, já dizia Niemeyer.
SN - Como foi a sua infância em Itaguara e/ou a região? Quais as principais lembranças?
NS - Minha infância em Itaguara é um tema recorrente. Em quase todos os meus livros há uma pracinha, uma casa velha, uma professora, um riacho, uma pessoa idosa, um medo, um passarinho, um sonho, amigos e amigas e muita saudade. Tenho lembranças muito queridas das coroações sob a batuta da Dona Nhá do Licinho, das peças de teatro no Salão Vicentino, excursões escolares, brincadeiras na calçada, corridas de bicicleta (emprestada: nunca tive uma) e muitas outras recordações diluídas em meus contos e poemas.
SN - Como e quando despertou o interesse pela leitura?
NS - O interesse pela leitura nasceu observando meu pai, Nico Sorrenti, lendo jornais. Ele lia até os anúncios. Depois minha madrinha Ica Brugnara Michetti, que mora em Carmópolis, me dava livros de presente. Eu ficava doidinha de alegria. Eu os lia até decorar.
Como nas histórias, um belo dia minha mãe achou por bem doar meus livros a uma criança cadeirante, moradora num povoado próximo. E foi justificando que ela seria feliz, que a leitura seria uma boa companhia, que eu já sabia as histórias de cor e salteado, então concordei.
Foi assim que eu me despedi dos personagens e num embrulho de papel despachei-os saudosa, coração miúdo, me fazendo de forte. Estava aprendendo mais uma lição de solidariedade.
Às vezes, pra desabafar, eu me lembrava dos meus amigos de papel que partiram e falava sobre a capa do livro Chapeuzinho Vermelho, com cestinha de palha em alto relevo, dando uns suspiros dramáticos perto da minha mãe. Ela me olhava com seus olhos claros e eu perdia a graça. Depois eu sosseguei. Afinal, a biblioteca da escola estava cheia de livros, e imaginei que eu poderia criar personagens para novas histórias.
SN - Conte-nos sobre como foi a sua saída de Itaguara.
NS - Aos 14 anos, com uma malinha de papelão prensado comprada na loja do Seu Zito Cunha e uma mochila de expectativas, vim fazer o Curso Normal como bolsista no Colégio Pio XII, em Belo Horizonte. Concluído o curso, voltei a Itaguara e trabalhei por quatro anos como professora na Escola Estadual Coronel Frazão: duas turmas de quarta série e duas de primeira. Depois voltei pra Belo Horizonte para fazer Letras e acabei ficando...
SN - Como Itaguara lhe inspirou em suas obras? Há alguma obra, conto ou poema dedicados à cidade? Algum personagem itaguarense ou de nossa região que lhe tenha inspirado?
NS - Cada autor escreve o mundo em que vive. É o lugar que ele mais conhece e menos derrapa. Um leitor atento pode facilmente identificar a minha terra na minha prosa ou nos meus versos. Personagens como o Bira, o Mundinho, a Dona Ruth do Nhô, Sá Joana, o Padre Geraldo, o Raimundo da Maroca, a Dona Trindade, A Dona Maria Geralda e tantos outros andam pelos meus livros como se estivessem em casa.
A crítica literária criou o termo auto ficção para denominar a combinação de dois estilos paradoxalmente contraditórios, como a autobiografia e a ficção. Alguns autores portugueses chamam de biografia lendária. Geralmente eu junto os retalhos, nem todos autobiográficos, e teço a colcha.
Quanto aos meus livros, posso citar alguns com assuntos mais ligados à autobiografia: Magrela, Era uma vez eu, Borboletas na chuva e Pequenas alegrias. Mas não acreditem em tudo. Uma parte é verdade, a outra é mentira e o resto eu invento.
SN - Por que a escolha profissional como professora? Você ainda leciona?
NS - Ser professora não foi bem uma escolha na minha época. Era o mais comum, o mais aceitável para mocinhas de fino trato e o que oferecia oportunidade de trabalho quase imediata. Em Itaguara não havia o Ensino Médio ou Técnico.
Eu curtia estudar, contar caso, poesia, teatro e canto. Tudo isso ajudou, porque o magistério requer o compromisso com o conhecimento e com o prazer de compartilhá-lo de modo mais criativo ou lúdico. Lecionei por mais de vinte anos. Depois fui trabalhar na Biblioteca “Luiz de Bessa”, hoje Biblioteca Estadual de Minas Gerais. Gostei tanto que acabei cursando Ciência da Informação na UFMG.
Trabalhei como docente nas disciplinas Literatura Infantil e Juvenil I e II na graduação da PUC Minas e na pós-graduação da UNIPAC Betim. Atualmente sou aposentada e não trabalho em cursos regulares de ensino. Trabalho em eventos ocasionais, como seminários, encontros e feiras de livros.
SN - Você lecionou no ensino fundamental e, posteriormente, na universidade. Quais as diferenças?
NS - Ser professor (a) no Ensino Fundamental ou na universidade é quase a mesma coisa. Cada instituição tem o seu próprio estatuto e suas especificidades, mas o sentimento, o comprometimento e a ética caminham no mesmo ritmo.
SN - Sua obra já foi traduzida para outros idiomas?
NS - Ainda não tenho obras traduzidas em outros idiomas. Tenho sinopses de livros meus em língua estrangeira publicadas em Resenhas da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) presentes em Feiras Internacionais, que funcionam como vitrines.
SN - Temos visto um revisionismo na literatura brasileira, apontando várias nuances de obras do passado. O próprio Monteiro Lobato, que no passado, já havia sido atacado sob pretexto de veicular ideias evolucionistas e socialistas, tem mais recentemente sido acusado de racismo. O que você acha disso? É possível revisitar essas obras do passado com um olhar do presente e condená-las? Banir textos ("condenados", como os de Lobato) das salas de aula e espaços de discussão é o melhor caminho?
NS - Sabe-se que já foram (e ainda são) publicados livros com problemas pertinentes à ética. Preconceitos e intolerâncias de todos os segmentos transitavam nas histórias e nos poemas com a “desculpa ou intenção” de levar o jovem destinatário a aprender algo para ser imitado depois, como preconizava a educação tempos atrás. Esse tipo de obra é que se chama de didatizante, moralizante ou pedagogizante. Tais obras ainda circulam nas escolas.
Vale lembrar que o livro informativo é o que ensina, dá normas, adestra,coloca a informação de fora pra dentro. A obra literária educa o sujeito por meio da reflexão, traz à tona, de dentro pra fora, as potencialidades que nele existem. Através do belo, amplia a sua percepção de mundo e isso vale para todas as artes.
Quanto a Monteiro Lobato, pode-se dizer que seus personagens são limitados a seus papeis e se constituem como arremedo do que acontece no mundo dito “civilizado”.
Falar sobre o racismo na obra de Lobato daria um texto extenso. Prefiro acreditar que problemas vistos hoje como incorretos, de quaisquer livros, não precisam ser expurgados da biblioteca. Pelo contrário: devem ser lidos, estudados, contextualizados e debatidos em classe, porque levam o leitor a descobrir questões à sua volta e a repensar valores que vão se incorporar ao seu desenvolvimento mental/existencial.
SN - Em diversas ocasiões, você tem ressaltado a importância de Mario Quintana em sua formação (inclusive foi o objeto de estudo de sua dissertação de mestrado). Conte-nos a respeito.
NS - Quintana é meu poeta preferido. Com ele, por ele e por meio de seus poemas eu me senti motivada a escrever minha dissertação de mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa intitulada “Voz de criança na lírica de Mario Quintana”.
Lírico, filósofo, irônico, compassivo, sintético, dono de uma aparente simplicidade, Quintana soube me encorajar e confortar num período difícil decorrente da doença de minha mãe. Eu me sentia pressionada pelo curso em si e pela condição de bolsista do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
Os versos de Mario Quintana se aninhavam no meu coração me fazendo crer que eu conseguiria concluir o curso e a dissertação no tempo exigido, condição para que a universidade não perdesse as três bolsas.
SN - Qual o seu poema preferido de Quintana?
NS - Um dos poemas consoladores é esse, “Dorme, ruazinha”. Eis um fragmento:
O vento está dormindo na calçada,/O vento enovelou-se como um cão.../Dorme, ruazinha... Não há nada.../Só os meus passos... Mas tão leves são/ Que até parecem, pela madrugada,/Os da minha futura assombração... (In: Nova antologia poética, Globo, p. 39).
Dois dias depois da defesa da dissertação, minha mãe, com passos leves, foi dormir o seu sono sossegado e puro em outra ruazinha...
SN - Quais outros poetas lhe inspiram além dele? E por quais motivos?
NS - Admiro a poesia desde a infância, quando eu declamava poemas para as visitas da escola e ganhava um copo de guaraná, bebida luxuosa para mim naquele tempo.
Gosto da poesia pelo seu caráter libertário, pela contenção da linguagem, pela plurissignificação, sonoridade, ritmo, enfim, por expressar a beleza e o sentimento do mundo. Pena ser complicado achar editora que a publique. Não tenho um livro preferido de Quintana. Todos são “preferidos”.
Além dele, amo Drummond, Cecília Meireles, Cacaso e Leminski. Contemporâneos como Leo Cunha, Ronald Claver, Antonio Barreto, Roseana Murray, Angela Leite de Souza, Ana Martins Marques, Ana Elisa Ribeiro, Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Aleixo, Sérgio Caparelli, Líria Porto e outros grandes poetas (são muitos) me encantam.
SN – E a prosa... Quais autores lhe encantam?
NS - Leio calhamaços em prosa, quando me fascinam. Dou ao autor a chance de me conquistar até o terceiro capítulo. Podem fazer o mesmo comigo. Pra falar a verdade, aprecio os textos curtos, como poesia, crônicas, contos, minicontos e microcontos. Seduzir o leitor com um mínimo de palavras é um desafio. Ultimamente participei de duas antologias de microcontos para o destinatário adulto: Micros-Beagá, já lançado, e Micros Uai! que será lançado em maio, em Belo Horizonte. Quintana contava que um velho professor recomendava aos alunos na aula de redação: “Não adianta escreverem muito. Só leio a primeira página; o resto eu rasgo.” Queria ter sido aluna desse professor.
SN - Qual a importância da mineiridade em sua obra, quer dizer, em que medida ter nascido e vivido em Minas Gerais marca a sua trajetória literária?
NS - É impossível ignorar os traços da mineiridade em meus textos. É quase involuntário. Escrever a partir de uma “vivência ou escutância” (termos usados por Sylvia Orthof) pode conferir verossimilhança ao texto. Guimarães Rosa chamava essa qualidade de “a verdade do inventado”. Daí pensar também na palavra “escrevivência”, muito citada por Conceição Evaristo. Ao rememorar, vamos fotografando com palavras cenas vividas ou ouvidas. Às vezes faz-se necessário usar photoshop...,que é o trabalho com a linguagem.
SN - E Guimarães Rosa, como avalia a obra rosiana? Qual livro prefere do Rosa? Qual conto de Sagarana é o seu favorito? Ouviu algo a respeito dele na sua infância em Itaguara? Saber que Guimarães Rosa morou em sua cidade lhe inspirou de algum modo?
NS - A obra de Guimarães Rosa é um assunto cativante, importantíssimo. Demandaria tempo e espaço para desenvolvê-lo com a profundidade que merece. Mas é imprescindível dizer que sua narrativa inovadora o elevou a clássico universal. Valeu-se da exploração da linguagem, do rompimento com paradigmas literários e da capacidade de refletir sobre a vida. Fez a geografia, a psicologia, a filosofia e mais outros saberes gravitarem em torno das angústias humanas.
Um conto de que gosto e tenho também motivos afetivos é “Corpo fechado”. Guimarães Rosa frequentava a sapataria de meu avô italiano, onde a prosa corria solta, com anotações num caderninho, segundo meu pai, e mereceu dele essa lembrança: De manhã, acordei cedo. Manuel Fulô curtia o epílogo da cachaceira. Fui providenciar. Quando ia saindo, encontrei o meu amigo Vicente Sorrente sapateiro, com os olhos amplos, me avisando: – Não faça isso, doutor. Mande o Manoel embora: – O Targino pode pensar que o senhor esteja se metendo. (In: Sagarana, Ed. Nova Fronteira, 28 ed. 1984.)
SN - Recentemente, uma pesquisa apontou que no Brasil, 44% da população não lê e 30% nunca comprou um livro. Outros números revelam que a média de livros lidos em nosso país é muito menor que países vizinhos como a Argentina e o Uruguai, por exemplo. O que fazer para mudar esse cenário e transformar o Brasil em um país de leitores?
NS - Muito se discute sobre como transformar o Brasil num país de leitores. Particularmente acredito que a palavra-chave é INCENTIVO e tudo que puder acompanhá-la. Incentivo à alfabetização, à escola afetuosa e criativa, à renovação do acervo das bibliotecas, à mediação do adulto, à oralidade, às novas tecnologias, ao conhecimento, à arte, à cultura, à inclusão, à formação do pensamento crítico, ágil e inventivo, etc.
Mesmo reconhecendo que todas as ações acima lembradas são importantes, gostaria de me deter no papel do MEDIADOR DE LEITURA. Seu bom desempenho é decisivo. Seja ele um familiar, um professor, um bibliotecário, um vizinho, um amigo –, ele é o grande iluminador no encontro entre o texto e o leitor. Se ele incentiva o leitor, precisa também ser incentivado a fazê-lo.
Aproximar alguém da leitura com determinação e carinho significa alargar seus horizontes, promover sua humanização e crescimento.
Desejo que esse MEDIADOR se entusiasme ao apresentar uma história ou um poema. Que ele convide o leitor a ler além das linhas para perceber os vários sentidos do texto. E que ele ame conectá-los a outros.
Essa leitura transformadora não elimina o esforço. Longe disso: requer muito empenho. Todo tipo de incentivo à leitura é tarefa grandiosa e imperiosa no Brasil. Porque é uma ação política que almeja um País mais digno.
SN - Neusa Sorrenti é um nome conhecido nacionalmente como das maiores escritoras de nossa literatura infantojuvenil. Possui currículo e trajetória acadêmica e profissional, além de dezenas de publicações. Já cogitou uma cadeira da Academia Mineira de Letras ou a imortalidade não lhe apraz? Você é amiga de vários imortais, alguém já conversou a respeito de um possível ingresso seu na AML?
NS - Nunca me ocorreu pleitear uma cadeira na Academia Mineira de Letras. Respeito e admiro o trabalho dos Acadêmicos, mas não me vejo aspirando à imortalidade. Preciso caminhar muito ainda.
SN - Como é o seu processo criativo? Como escreve seus livros, de onde vem a inspiração e como traduzi-la para o papel?
NS - Primeiramente, ao olhar assustada a página branca de medo, reflito sobre um assunto que tenho em mente. Às vezes, se juntam a ele um filme, uma paisagem, uma dor caída na rua. Em seguida, alinhavo e costuro as frases.Tanto costuro como corto também. Para textos em prosa, rascunho ideias, cenários e personagens, e depois eu os desenvolvo no computador.
Poesia, não. Deixo a lápis as palavras escritas no caderno, cravadas ali para que não fujam. São difíceis de achar. As palavras arduamente garimpadas são como pássaros. Se descuidamos, partem para longe em voos sem volta.
Sou muito lenta e cautelosa. Costumo escrever, reescrever até o cansaço falar chega, desse mato não sai coelho...
SN - Na pandemia, você produziu mais? Ou leu mais? Você percorre o país em feiras literárias e congressos, como foi o período pandêmico para você?
NS - Na pandemia, o medo exigiu de todos muito cuidado. Fiquei completamente só no apartamento. Não saí, não viajei. Participei de lives sobre leitura e literatura. Procurei ocupar esse tempo com tarefas agradáveis. Tentei aprender uns acordes de ukulele, interessei-me por aulas de italiano, Dio mio, assisti a filmes africanos, reli livros de Literatura Africana. Enfim, realizei um desejo antigo de escrever poemas afro-brasileiros para crianças e jovens. E para quem mais quiser ler, pois deixam ver alegrias e sofrimentos muito comuns aos dois países. Os poemas se distribuem em dois livros e serão lançados neste ano, espero.
SN - Uma curiosidade: você lê livros digitais ou apenas físicos?
NS - Costumo ler livros digitais teóricos, como teses, ensaios, entrevistas. Prosa e poesia gosto de ler na forma física, porque reviro capa, quarta capa, orelha, página de créditos, miolo, sinto a textura do papel, carrego na bolsa, escrevo a lápis nas margens, ou seja, o livro vira companheiro mesmo.
SN - Qual o último livro que você leu e qual está lendo atualmente?
NS - Uma boa geminiana costuma misturar um pouco, lendo dois ou mais livros ao mesmo tempo. Como faço resenhas para sites de editoras, acabo lendo muito por causa do trabalho, mas não deixa de ser uma tarefa prazerosa. Com aqueles não pertencentes à tarefa de resenhar, a farra é maior; Se é antologia, leio um conto do meio, leio de trás pra frente, pulo pedaços pra voltar depois. Ou leio sem firulas, se é novela ou romance.
Ultimamente li O fio das missangas, do angolano Mia Couto; O livro das semelhanças, da mineira Ana Martins Marques e Ponciá Vicêncio, da também mineira Conceição Evaristo. Estou lendo agora As andorinhas, da moçambicana Paulina Chiziane.
SN - Qual o livro imprescindível em sua biblioteca (aquele que você não empresta nem para o melhor amigo(a).? A propósito, você costuma emprestar livros?
NS -Não tenho um livro especial, tão precioso que não possa ser emprestado nem ao melhor amigo. Já emprestei livros raros que nunca foram devolvidos. Por isso, quando o interesse é grande, opto por dá-los de presente.
SN - Nelson Rodrigues escreveu certa vez que "Deve-se ler pouco e reler muito. Há uns poucos livros totais, três ou quatro, que nos salvam ou que nos perdem. É preciso relê-los, sempre e sempre, com obtusa pertinácia. E, no entanto, o leitor se desgasta, se esvai, em milhares de livros mais áridos do que três desertos.” Você concorda com Rodrigues?
NS - Ao fazer uma releitura, sempre descobrimos algo que passou despercebido na primeira leitura, porque com o tempo aumentamos o nosso repertório. Concordo: reler é essencial. No entanto, há obras intrincadas que necessitam de um momento propício para serem apreciadas, seja na leitura ou na releitura. Para Quintana (ele de novo), “há duas espécies de livros: uns que os leitores esgotam, outros que esgotam os leitores.” (In: Caderno H, Globo,1995, p.17) Já tive as duas experiências.
SN - Você é otimista com o mundo e com o Brasil
NS - Acho que sou realista com o mundo e com o Brasil. Leio, ouço opiniões, comparo, duvido, analiso, aprendo, repenso e, se for o caso, reconsidero conceitos cristalizados. Ter um espírito aberto se configura como um bom exercício para todos. Para um autor de livros é fundamental, porque ele precisa saber dialogar com o editor.
SN - Qual a sua ligação com Itaguara na atualidade?
NS - Tenho ido pouco a Itaguara, mas me surpreendo com os progressos da cidade, como obras públicas, prédios, lojas. Cumpre notar que a Biblioteca Pública Municipal Guimarães Rosa, assim como o Museu Sagarana, têm um excelente acervo e merecem ser mais visitados. Ser indiferente ao conhecimento existente nessas instituições é, no mínimo, ingênuo e desconcertante. Bibliotecas, museus, arquivos públicos são como jardins: requerem um tipo especial de olhar. Um olhar mais desarmado e disposto a se deixar maravilhar pelo que vê. Um velho poeta amigo meu disse: (...) O que mata um jardim não é mesmo alguma ausência nem o abandono... O que mata um jardim é esse olhar vazio de quem passa por ele indiferente. (In:Anotações poéticas.Mario Quintana,Globo, 1996, p.82)
SN - A finitude é inerente a todos nós. Isso lhe incomoda? O que pensa sobre a morte? Como você gostaria de ser lembrada?
NS - Por vezes, me pego com medo do desconhecido. Mas a finitude é algo inerente ao ser humano. No poema “Adeus” escrevi assim: A morte não é bela/nem horrorosa./ Talvez seja–/ talvez não–/ só uma pequena chama/cansada das ventanias/ que tomou outro caminho/sem mão/ e sem contramão. (In: Poemas empoleirados no fio do tempo. Ed. Autêntica, 2013, p. 60)
Fico feliz por ter vivido até aqui e gostaria ainda de ver acesas muitas chamas. Sou adaptável às ventanias. Não fico remoendo descompassos e muito menos insisto em sonhos que respiram por aparelhos. Reinvento minha vida da melhor maneira que posso.
Lucidez, paz, dignidade, energia e humor fazem muito bem à saúde. Rezo a Deus para ser merecedora desses tesouros. Gostaria de ser lembrada como alguém que os preza.
SN - A uma última pergunta é uma curiosidade. Numa das entrevistas que você concedeu (salvo engano à EBC), você definiu a si mesma como "professora, escritora e avó". Como ser avó modificou a sua cosmovisão de mundo e como esse fato influencia em sua produção atual?
NS - Ser avó é ser mãe de um jeito diferente. Os netos nascem, vão crescendo, dizem coisas risíveis e espirituosas e nos fazem sentir amados. E quando notamos já estão de barba e bigode, calçando 43, grudados nos amigos e entrando na faculdade.
A convivência com os netos é uma aprendizagem emocionante, inesquecível e sem conclusão de curso, pois o milagre da vida sempre se renova.
Inspirando-me neles, escrevi Carta de um menino para a pior avó do mundo (baseado num fato real) e Um casório na Lua (netos pequenos diante da avó com Alzheimer).
SN - Muito obrigado pela entrevista. Você gostaria de deixar uma mensagem para os leitores do Sagarana Notícias?
NS - Que os leitores do Portal Sagarana compartilhem leituras, em qualquer suporte, levando pelos caminhos do cotidiano a alegria de serem também mediadores de leitura.
Obs: todos os meus livros podem ser encontrados na Biblioteca Pública Municipal Guimarães Rosa, de Itaguara.
E-mail para contato: sorrentineusa@gmail.com
Obrigada, Diego, pelo carinho e apoio de sempre. Gosto muito de vosmicê!
Sou admiradora do trabalho da Neusa Sorrenti. Seus livros são fontes de inspiração para meu trabalho de mediação de leitura e contação de histórias. Fiquei com vontade de conhecer Itaguara. Parabéns para a produção da Sagarana Notícias por essa linda entrevista.