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Foto do escritorMarcelo Lenna

Humanoide

Querido humanoide,


Demorei muito a “querer começar” esta carta... Hoje não sei se por aqui haverá literatura... Eu cá, sempre antes de escrever, gosto muito de tomar bênçãos, pegar na mão de Deus que é para trazer luz às palavras. Trato-as com muita seriedade, afinal, palavras são portais. Acho que não haverá literatura, pois, tudo que vi e li acerca da crise humanitária vivida pelos povos Yanomami me entristeceu profundamente. Fez-me refletir, mais uma vez, sobre o caminho da humanidade, sobre nosso país, sobre a nossa identidade étnica ancestral, indígena e africana e, sobretudo, o valor da vida em sua mais pura e efêmera essência. Ora: até quando, como brasileiros, vamos desconhecer nossos problemas e negar as nossas raízes ancestrais? Até quando, como humanos, ignoraremos a vida e normalizaremos genocídios? Já dizia Edmund Burke: “O povo que desconhece a sua história está fadado a repeti-la”.


Queria lembrar que não é novidade o atroz genocídio vivenciado pelos povos originários desde a chegada dos europeus nas Américas. Passados 70 anos de colonização, cerca de 70% da população indígena havia sido dizimada no Brasil, como conta as cartas de Padre Antônio Vieira, um importante pároco jesuíta que denunciou e lutou pela causa abolicionista indígena. Em números, os antropólogos Marcelo Grondin e Moema Viezzer apontam em seu livro “O maior genocídio da humanidade” para 70 milhões de vítimas entre os povos originários da América Latina ao longo dos séculos. Não vou aqui mencionar a escravidão africana, deixemos para outra oportunidade. Fato é que nossa história é manchada de sangue. Nas Américas e no Brasil nadamos em sangue... Lázaro ou alguém, explica-me: existe por acaso algum tipo de reparação histórica para estes casos?


Para os Yanomami, ''urihi'', a terra-floresta, não é um mero espaço inerte de exploração econômica (o que chamamos de “natureza”) Trata-se de uma entidade viva, inserida numa complexa dinâmica cosmológica de intercâmbios entre humanos e não-humanos. Como tal, se encontra hoje ameaçada pela predação cega dos brancos. Na visão do líder Davi Kopenawa Yanomami:


“A terra-floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripë, que moram nas serras e ficam brincando na floresta, acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los para nos proteger. A terra-floresta se tornará seca e vazia. Os xamãs não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim, todos morrerão.”

No mais, Yanomami significa “seres humanos”. É irônico e muitíssimo simbólico o genocídio televisionado, vivido por estes povos e todos os esquecidos, espalhados pelos quatro cantos do mundo. É muitíssimo simbólico o ataque às pessoas carentes, aos refugiados, aos necessitados e, nojenta, a retaliação sofrida por quem se dispõe a ajudar qualquer irmão. É irônica, trágica e nada cristã a forma como negligenciamos o ato de viver, preferindo muitas vezes o conflito, o ódio e a ganância do que a paz, o amor e a simplicidade. Trocamos a conversa amiga por likes e trends; aprendemos a alimentar por dopamina o narciso que nos leva ao fundo do poço. Somos cada vez mais programação e menos sapiência. Perdemos nossas virtudes, nossa empatia. Trocamos a nossa capacidade de contemplação por horas de vida na matrix. Nos tornamos cada vez mais Humanoides.


Já é quase meia-noite no Doomsday Clock, o relógio que marca o fim da humanidade. 90 segundos para ser mais exato. Sobreviveremos? Ao tintilar da morte, amigo humanoide, o que você vai deixar de bom? O que você vai deixar de bom?


“Passa-tempo tick-tack, tick-tack passa a hora; chega logo tick-tack, tick-tack vai-te embora.” (Vinícius de Morais).




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