Neste 7 de setembro, enquanto celebramos a independência do Brasil, é importante olhar além das comemorações e refletir sobre as dinâmicas históricas que levaram a América Latina a seguir caminhos tão diferentes. O Brasil, que emergiu como um país unificado, contrasta fortemente com a fragmentação da América hispânica, que deu origem a diversas nações independentes.
O processo de independência do Brasil não pode ser visto de forma isolada porque faz parte de uma narrativa mais ampla, que envolve a centralização do poder, a continuidade das elites e a preservação de uma ordem social desigual. Tudo isso contrasta com o desmembramento territorial e as profundas transformações políticas que marcaram as antigas colônias espanholas.
No século XV, com a assinatura do Tratado de Tordesilhas, as potências ibéricas dividiram o mundo, estabelecendo as bases para dois impérios coloniais distintos. A porção atribuída a Portugal daria origem a parte do Brasil, enquanto o restante do continente americano ficaria sob o controle espanhol. Desde então, a organização administrativa desses territórios seguiu rumos diferentes, o que influenciaria diretamente seus processos de independência. O Brasil desenvolveu-se como uma unidade territorial relativamente coesa, enquanto a América espanhola, marcada pela vastidão geográfica e pela divisão em virreinatos (vice-reinos) e capitanias, tendia à fragmentação.
A América hispânica era composta por quatro grandes virreinatos e várias capitanias gerais, com pouca comunicação e integração entre si. Cada vice-reino tinha um centro administrativo autônomo, o que fomentava a rivalidade e reforçava a descentralização. Essa configuração territorial facilitou, no futuro, a divisão em várias nações independentes, uma vez que as elites locais já estavam habituadas a gerenciar suas regiões com relativa autonomia. No Brasil, a situação foi bastante diferente. A criação de capitanias hereditárias, seguida pela centralização do poder nas mãos da coroa portuguesa e a unificação administrativa, resultou em um território mais coeso, com o Rio de Janeiro e Salvador como centros políticos e religiosos.
A invasão de Napoleão na Península Ibérica em 1808 foi o estopim para as mudanças nas colônias de ambos os impérios. Enquanto a monarquia portuguesa transferiu sua corte para o Brasil, consolidando o Rio de Janeiro como sede do poder imperial, a invasão da Espanha resultou em um vácuo de poder. Fernando VII foi deposto e substituído por José Bonaparte (irmão de Napoleão), o que provocou uma reação imediata nas colônias espanholas. As elites crioulas (criollo designava o descendente de espanhóis nascido na América), que já vinham se ressentindo de sua exclusão do poder , formaram juntas de governo locais, forjando a base para os movimentos de independência.
A fragmentação da América hispânica, no entanto, não foi fruto somente da desordem política na metrópole. Havia uma profunda divisão social entre os crioulos, descendentes de espanhóis nascidos nas colônias, e os peninsulares, que vinham da Espanha. Embora economicamente poderosos, os criollos estavam excluídos dos altos cargos administrativos, ocupados pelos peninsulares, o que alimentava o ressentimento. Esse antagonismo foi fundamental para o desencadeamento das guerras de independência, mas também foi uma das razões para o fracasso dos projetos de unificação, como a Grande Colômbia de Simón Bolívar. As rivalidades regionais e a falta de uma coesão entre as elites locais levaram à fragmentação territorial após a independência.
No Brasil, a chegada da corte portuguesa em 1808 teve um efeito centralizador. Foi algo inédito e nunca antes visto: de colônia de exploração, o Brasil passou a ser a sede do reino. A presença de Dom João XVI e da aristocracia reforçou a unidade territorial e preparou o país para uma transição política “mais ordenada”. Quando Dom Pedro I declarou a independência no fatídico 7 de setembro de 1822, o fez dentro de uma estrutura de poder consolidada, com amplo apoio das elites locais.
Em 1823, a jovem nação deu início à elaboração de sua primeira Constituição, conhecida como “Constituição da Mandioca”. O projeto foi debatido na Assembleia Constituinte e estabelecia critérios de renda, medidos em alqueires de mandioca, para determinar quem teria direito ao voto e à ocupação de cargos públicos. Essa proposta limitava a participação política às elites agrárias, excluindo a maioria da população. O processo constitucional acabou abruptamente interrompido quando Dom Pedro I dissolveu a Assembleia, frustrando a tentativa de criar uma Constituição mais representativa e centralizando o poder na figura do imperador, o que culminaria na outorga da Constituição de 1824.
Ao contrário das guerras violentas e prolongadas que ocorreram nas colônias espanholas, o Brasil conseguiu uma transição relativamente pacífica, preservando sua integridade territorial. No entanto, essa unidade não foi conquistada sem concessões: a manutenção da monarquia e do sistema escravista foram fundamentais para garantir que as elites agrárias continuassem no controle.
A escravidão, aliás, é um ponto central para entender o processo de independência do Brasil. No início do século XIX, o Brasil era o país com a maior população escravizada do mundo. As elites brasileiras temiam uma revolta escrava semelhante à que havia ocorrido no Haiti, onde a população escravizada assumiu o controle após uma violenta guerra de independência. A criação de uma monarquia centralizada com Dom Pedro I como imperador foi uma estratégia para manter a “ordem social” e proteger os interesses dessas elites.
A continuidade do sistema escravista no Brasil até 1888 demonstra que a independência brasileira, ao contrário do que muitas vezes é celebrado, não representou uma autêntica ruptura com a ordem colonial. As elites agrárias mantiveram seu poder, e a estrutura social permaneceu praticamente intacta. Enquanto a América hispânica enfrentava um processo de construção republicana, marcado por instabilidade e conflitos, o Brasil consolidava sua unidade sob a égide de uma monarquia que preservava as desigualdades.
Já na América hispânica, a fragmentação foi a marca registrada do pós-independência. A falta de um centro de poder forte e as rivalidades regionais resultaram na criação de várias nações independentes, cada uma enfrentando os seus próprios desafios internos. O fracasso das tentativas de unificação, como a de Bolívar, expôs as fragilidades dessas novas repúblicas, que enfrentaram décadas de guerras civis e instabilidade política. No Brasil, a centralização do poder em torno da monarquia foi um dos fatores que garantiu a unidade territorial, também perpetuando um sistema de poder baseado na exclusão social e na manutenção da ordem escravista.
A independência do Brasil pode ser vista como uma “exceção” na história da América Latina. A unidade territorial que o país conseguiu preservar após 1822 foi fruto de uma combinação de fatores: a presença da corte portuguesa, a centralização do poder em torno da figura do imperador e o apoio das elites agrárias. A transformação social — objetivo central de um processo de emancipação — foi adiada por décadas, e a verdadeira ruptura com o sistema colonial ainda levaria muito tempo para se concretizar.
O fato é que o ato simbólico de ruptura com Portugal, embora importante, não trouxe uma mudança imediata para a imensa maioria da população brasileira, que continuou marginalizada pelas elites que controlavam o poder político e econômico.
O contraste entre a unidade territorial do Brasil e a fragmentação da América hispânica não pode ser visto apenas como uma espécie de “triunfo”. Essa é uma característica histórica e social, construída sob a égide da brutal desigualdade e dos arranjos oligárquicos.
O 7 de setembro sempre nos oportuniza reflexões sobre o sentido da independência — um olhar crítico sobre as estruturas sociais e econômicas, a soberania, a cidadania e a liberdade. Esses conceitos, essenciais em uma sociedade verdadeiramente livre e democrática, devem ser acompanhados de uma profunda contextualização histórica. Afinal, somos herdeiros desse passado e conhecê-lo é pré condição para transformar o presente.
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