“Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir”
(Versos de “Nosso Tempo”, poema de Carlos Drummond de Andrade publicado em 1940, na antologia Sentimento do Mundo. O poema foi escrito no final da década de 1930, durante a Segunda Guerra Mundial)
Dando sequência ao texto anterior, no qual abordei um pouco de meu olhar a respeito da gestão municipal em Itabira, após 15 meses de vivência na cidade, nesta coluna explorarei, sem quaisquer pretensões acadêmicas (se não, o faria numa revista científica e não numa coluna preponderantemente literária e livre das amarras metodológicas), algumas faces da ambiência política hodierna na terra de Drummond.
No primeiro texto, compartilhei um pouco da minha visão sobre alguns dos aspectos administrativos gerais do município: a estrutura da gestão, os instrumentos de planejamento público existentes, o histórico recente e elenquei um desafio contemporâneo. Neste artigo, o objetivo é abordar, sem adentrar em minudências, as relações sociais e políticas a partir da nova gestão que se inaugura em Itabira em janeiro de 2021. Como é o ambiente político itabirano? O que se pode constatar da política municipal após pouco mais de um ano de vivências? São duas das perguntas a serem respondidas pelo tecnocrata-literato-pensador.
Um dos primeiros aspectos a chamar a atenção na gestão atual de Itabira é o próprio prefeito, Marco Antônio Lage. Não se trata de um político caricato; não é, notadamente, um neófito no ambiente político em busca de holofotes e poder – e isso é raro. Basta ler a sua biografia para perceber que se trata de um homem realizado profissionalmente e que ingressou na política porque desejava oferecer aos seus concidadãos a larga experiência à frente da área de comunicação de uma das maiores empresas multinacionais instaladas no Brasil.
A maioria dos políticos interioranos pensa apenas em reeleições, relegando a segundo ou terceiro planos um planejamento consistente e efetivo de médio e longo prazos para as cidades. Marco Antônio, desde o início de sua gestão, pensou diferente e decidiu projetar Itabira para um novo tempo. Não possuía um projeto de poder para perpetuar seu recém-criado grupo político na máquina pública. Almejava, e isso estava claro, deixar um legado político e administrativo para a sua cidade, diversificando a economia, diminuindo a dependência econômica, financeira e orçamentária da Vale e estabelecendo um novo patamar de qualidade de vida para a população. Algo louvável na política brasileira, movida majoritariamente por interesses próprios, travestidos das mais nobres preocupações coletivas.
Além desse apontamento, isto é, um chefe do Executivo municipal convictamente interessado em mudar estruturas e destituído de interesses personalistas, outros três aspectos podem ser destacados ao se analisar a ambiência política itabirana – um claramente local e os outros dois notadamente caracterizadores da política nacional – elementos um tanto complexos e que demonstram o tamanho do desafio que é navegar nas turvas águas da política. São eles: 1) a tensão entre Executivo e Legislativo; 2) o relacionamento complexo com a Vale S.A.; 3) o papel da mídia local nas articulações políticas.
O primeiro ponto é perceptível e, de acordo com fontes que ouvi na cidade, a relação entre Executivo e Legislativo tem sido um dos grandes desafios do município ao longo das décadas. O clima de adversidade política, muitas das vezes, ultrapassa o limite do razoável e a crítica saudável e necessária dá lugar a um relacionamento deletério para a democracia, uma vez que dinamita quaisquer possibilidades de um diálogo emancipador visando aos interesses da cidade acima de nuanças partidárias e/ou personalistas.
No interior, sempre ouvi o dito popular: “quando um não quer, dois não brigam”. É possível amenizar o ambiente hostil quando um dos lados propõe a pacificação. Todavia, quando um dos lados não quer fazer as pazes, o clima nunca será totalmente ameno. No caso de Itabira, é perceptível essa hostilidade desmedida que, em parte, traduz um pouco do sentimento do que vem ocorrendo com o Brasil desde o impeachmentinfamemente fabricado contra a presidenta Dilma Rousseff: Legislativo cada vez mais fortalecido e que tenta impor as suas vontades (algumas, de fato, inseridas no escopo da representação popular, mas outras indizivelmente desviadas da melhor finalidade republicana, ética e democrática) a qualquer custo a um Executivo cada vez mais enfraquecido e dependente de maiorias parlamentares.
Nesse sentido, há de se destacar um componente nitidamente itabirano: a não tradição em reeleger prefeitos. Isso denota um elemento importante porque a Câmara Municipal pode projetar nomes para almejar o Executivo. Assim, é preciso “bater” para aparecer. O único chefe do executivo reeleito em mais de duas décadas foi João Izael (2005-2012). Agrava esse contexto e a dificuldade do diálogo interpoderes se potencializa com alguns desacertos na condução política – o que é absolutamente normal em se tratando de governos novos.
Acrescente-se que todos os governos (nas três esferas da federação) possuem seus desacertos e as escolhas (sobretudo do primeiro escalão) nem sempre são as mais adequadas, algo que só pode ser constatado ao longo do caminho. Afinal de contas, ninguém tem bola de cristal. O importante, nesse caso, é ter a capacidade de fazer a correção de rotas. Isso também foi e tem sido feito em Itabira. O prefeito, nos momentos em que necessitou, fez alterações necessárias, inclusive com base nas entregas ou “não entregas” e a aderência ao propósito do governo.
O segundo ponto observado no que concerne à política local diz respeito à Vale S.A., mencionada também no primeiro artigo, enfocando a vampirização provocada pela monocultura mineral. Se no primeiro texto a questão se referia ao aspecto administrativo da dependência econômica e financeira da mineradora e à instabilidade estrutural que isso causa, já neste artigo a questão é a abordagem política. A Vale é responsável por pautar boa parte do debate político itabirano. A companhia não possui (ou finge não compreender) a verdadeira dimensão de sua importância para o contexto municipal. Ao invés de induzir grandes projetos de desenvolvimento, de modo a reduzir a sua dependência, insiste em um discurso cooperativo, mas que, na prática, não tem sido capaz de alterar substancialmente a realidade econômica do município. Itabira deve muito à Vale (seu crescimento se ancorou, desde os anos 40, na atividade mineradora) e isso todos sabem, mas a Vale deve TUDO a Itabira porque sem as riquezas minerais (o berço da exploração de larga escala no Brasil), sequer existiria essa multinacional. Ainda há tempo de corrigir essa situação, desde que a Vale saia da narrativa e auxilie, de forma efetiva, o munícipio numa real transformação/diversificação de sua matriz econômica.
Por fim, vale mencionar a mídia local como terceiro aspecto da ambiência política itabirana. Como ocorre em quase todas as cidades que conheci de perto, Itabira possui uma mídia bastante ativa. Parte dela se comporta como porta-voz de interesses notadamente privados, mas que, travestidos de interesse público, confundem e muito os cidadãos. Ressalte-se que há na cidade jornais sérios e jornalistas responsáveis, mas uma minoria barulhenta, flagrantemente financiada por ambições escusas, consegue tumultuar o ambiente político e confundir parte da população, impondo temáticas à agenda pública.
Para não parecer um analista metódico e insensível, preciso dizer algo para terminar: Itabira conquistou o meu coração. Senti uma mineiridade candente ali, uma identificação poética, humana, solidária. Fui muito bem recebido, profissional e afetivamente, e isso não será esquecido nunca.
Eu sei que é meio clichê a frase de Antoine de Saint-Exupéry na imorredoura e genial obra "O Pequeno Príncipe", mas ela é a que melhor ilustra a minha relação com a Pedra que Brilha: “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé” (Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas). Itabira me cativou e eu, de certo modo, cativei alguns bons amigos na cidade. Minha relação, pois, com a terra do minério não acabou com o fim de meu ciclo profissional. Eu continuo daqui, com um pouco de ferro nas almas, afetivamente responsável e vigilante pela cidade que, afinal, é também o berço do meu poeta predileto nesta e noutras vidas. Eu simplesmente não quereria ter nascido num mundo onde não existissem os versos de Drummond. E termino com alguns deles sobre a sua/nossa cidade:
“A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizonte
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.”
* Alisson Diego Batista Moraes, professor, advogado, gestor e filósofo. Mestre em Ciências Sociais pela PUC-Minas e doutorando em Ética e Filosofia Política pela UFOP. E-mail para contato: alissondiegobatista@yahoo.com.br.
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