Tento, há algumas semanas, escrever este texto. Começar coisas novas é sempre muito díficil, e escolher é sempre abrir mão de outras mil possibilidades. Tantos autores passaram pela minha mente... o que dizer de tão ilustres figuras? Pensei em desistir, e tentei ocupar minha rotina com outros afazeres a ponto de me esquecer desta pendência, deste pedido.
Um clássico só é clássico porque apesar de ser antigo e remeter a outros tempos, costumes e modos, estamos sempre nos voltando a eles, lembrando dos detalhes mais triviais nas nossas confusas rotinas. Olhando para a minha estante, vi aquele nome grande, em fundo azul claro, que tanto me confronta: Lygia.
A autora dispensa apresentações. Falecida no ano passado, consagrou-se como a dama da literatura brasileira. Única brasileira indicada ao Nobel de Literatura, ganhadora do Prêmio Camões, de vários prêmios Jabuti, é um dos maiores nomes do modernismo brasileiro; seus livros, romances e contos, foram traduzidos para as mais diversas línguas, viraram novelas, peças de teatro, e cativaram o coração leal de leitores em todo o mundo. Imortal da Academia Brasileira de Letras e, para nossa felicidade, imortal também para muito além da academia. Lygia está nos livros didáticos, nos posts do Instagram, nos reels e tiktoks... no devagar depressa dos tempos, essa senhora elegante continua firme e presente, sutil e constante, nos nossos dias.
Sou um desses leitores arrebatados. Lembro-me do primeiro conto, da primeira conversa, do primeiro livro... Ah, que saudade do gosto das primeiras vezes, do antigo diálogo sobre “Venha ver o pôr-do-sol”, conto escandaloso de Lygia. Comentei com Cida, a bibliotecária da escola que estudei, que havia gostado daquele conto. “Deus me livre! Tenho pavor daquele conto. Cara maluco, aquela menina foi doida de namorar ele!”.
Lygia é minha companhia em diversas memórias que fui cultivando por aí. Sempre uma voz opaca, com esse ar de mistério, esse ar de quem muito viveu. Sempre me impressionou como poderia ser tão sagaz uma senhora tão refinada. Em “Natal na Barca”, Jesus é uma criança pobre, e Deus um maltrapilho bêbado. Em “Uma sombra branca pálida", ela aborda o conflito geracional, e o remorso da ausência. Até o mar, ora calmo, ora agitado, em “O menino e o velho” parece suspeitar sobre um estranho encontro em um café.
Lygia consegue fazer algo que considero único em nossa literatura. Ela une o fantástico àquilo que a vida nos oferece de mais banal. O inimaginável emerge do cotidiano. Suas reflexões são majoritariamente sobre nossas questões últimas: amor, morte, incertezas, medo, solidão. Nossa dama, no entanto, traz esses temas tão enraizados no cotidiano, que ao ler os textos, nos lembramos de como o comum é valioso, e contém o extraordinário.
Nutro com esmero essa paixão. Leio os contos, paro, imagino, releio. Leio as críticas, vejo as antigas entrevistas ainda disponíveis, posto-lhe homenagens no dia do aniversário. Outro dia, para minha enorme surpresa, um amigo me disse em um jantar: “mas tem aquele conto último, escondido por anos, escrito por ela, e lançado recentemente, né?”. Foi uma euforia mista. Inquietação e revolta. “Há um conto novo? Como eu não o conhecia antes? Até este amigo, que apesar da paixão pela leitura, não é homem das letras, já o conhece, e eu não?”.
Não contive a espera. Ao chegar em casa, imediatamente busquei pelo conto perdido, que estranhamente também se chamava “A espera”. Ao lê-lo, todo aquele misto de sentimentos ambíguos que somente um conto Lygiano é capaz de nos transmitir. Essa aflição que também é alívio, essa dor que também é antídoto, essa espera que também é mudança, essa liberdade em forma de prisão. O conto diz sobre um casal que teve sua convivência interrompida após o rapaz sumir sem deixar rastros em uma noite de natal, tendo um repentino reencontro dez anos depois.
Desconcertante, e belo. Recentemente, tenho pensado que o belo é marcado também por certa melancolia. Esse conto me leva a concordar com esse pensamento. Temática recorrente na obra de Lygia, e em nossas vidas também, não podemos dizer que trata-se de um conto inovador, fora do comum, mas certamente, trata-se de um conto extraordinário. Penso nessas nossas súbitas vontades, dessas coisas que não têm a menor pretenção de acontecer, dessas aflições e desejos que fogem ao nosso controle, e nos tomam os pensamentos. Todos temos isso. Penso também nas nossas obsessões, paixões irrestritas, irracionais, que nos fazem continuar, insistir, permanecer, ainda que sem nenhuma razão. E todos temos isso, também.
Lygia nos apresenta essas características intrínsecas à vida, que temos tanta dificuldade de lidar: o continuum e a mudança. As coisas são mais que sim ou não, ir ou ficar, aceitar ou negar, amar ou deixar. E a mudança, a constância única da natureza, que faz nosso coração parecer um bar vazio no fim de tarde tocando Belchior. Tudo o que foi, e não mais será. Tudo o que poderia ser, e ficou só na ideia. A escolha, que é ganho, mas também é perda. A expectativa, que também é desencanto. A mudança, que é sempre coisa nova, mas também a perda de todas as outras coisas que seriam. Dois lados de um mesmo contínuo, sempre mudando, nos deixando sempre no aprendizado e na ausência: ida e espera.
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