Quando dei por mim, era Chico Buarque que eu mais gostava de ouvir. Lembro-me vividamente da aula de História na quinta série, eu tinha 11 anos de idade. Ao ouvir a professora dissecar os versos de Apesar de você, quando um corajoso e combatente compositor proclamava o fim da ditadura: "Hoje você é quem manda / Falou, tá falado / Não tem discussão (...) / Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia”. Senti um chamamento irrecusável a conhecer a realidade do meu país – o que sacudiu as minhas cômodas convicções pré-adolescentes e abriu meus olhos para a realidade ao meu redor. Ali, entre as paredes da sala de aula, a resistência ganhava voz e força, e eu era apresentado ao meu “ídolo” (sou radicalmente contra qualquer tipo de idolatria, mas utilizo neste texto a nomenclatura com a devida licença poética).
Foi ali também que a professora explicou a força poética dos versos de "Cálice", habilmente transformando um substantivo (a taça litúrgica) em verbo pronominal. O vinho tinto era sangue. O silêncio era dor. A canção era um grito de protesto enquanto a ditadura torturava e matava. Chico e Gil, com poesia contundente, denunciavam aquele Brasil que eu começava a compreender por meio da MPB e das aulas de História. Foi ali que me apaixonei pelas metáforas, pelas melodias e pela narrativa profunda que as canções carregavam.
Não era nada comum meninos de onze, doze anos gostarem de Chico Buarque. Meus colegas preferiam Skank, Titãs, Paralamas e, quando muito, se aventuravam no pop rock internacional com Alanis Morissette e Oasis. Eu também gostava muito de pop rock, mas talvez com um ouvido menos atento aos anos 90 e uma sensibilidade social crítica um tanto precoce (o que não recomendo a ninguém), encontrei em Chico uma profundidade que ressoava além das melodias e me provocava a estudar história e poesia. Ademais, havia uma potência entre letra e som que me cativava e me fazia querer conhecer mais daquele Brasil não democrático que só os livros me contavam. A força de suas canções, a poesia que transcende o tempo, despertava em mim uma curiosidade insaciável por entender o contexto em que foram criadas. As letras de Chico Buarque, carregadas de metáforas e críticas sociais, eram uma porta para um universo de resistência e luta que eu estava apenas começando a descobrir e a gostar.
Ao longo dos anos, a minha admiração por Chico Buarque se intensificou. Passei a não apenas ouvi-lo, mas também a ler suas obras – lembro-me de, prematuramente aos 13 anos de idade, enfrentar a complexidade de "Estorvo" e "Benjamim. Descobri, então, que o autor de “A Banda” e “Pedro Pedreiro” era mais do que um compositor; era uma espécie de “poeta maior” de seu tempo e espelho da alma brasileira, um versejador e literato que denunciava as injustiças sem perder a ternura das emoções. Suas músicas e seus textos capturavam a alegria, a tristeza, a resistência, a angústia a complexidade, a esperança e as incertezas em personagens fortes, ficcionalmente humanos. Mesmo assim, ainda era alvo de provocações pelos amigos. Enquanto os ídolos deles, com cabelos compridos, barbas e guitarras estridentes, vociferavam no rock, o meu ídolo cantava samba com uma voz mansa e crítica. Além disso, Chico Buarque era “o velho da aula de História que cantava denunciando a ditadura, driblando os censores”.
No final dos anos 1990, eu “tirei onda” com os meus amigos porque Chico, com o lançamento de As Cidades e Carioca, concorreu ao Prêmio Multishow de Música Brasileira na categoria Álbum do Ano. Meu "ídolo" não era apenas um veterano da MPB, cuja música estava agrilhoada ao tom denunciativo de décadas anteriores. Como cantor, compositor e escritor, ele se revelava um homem contemporâneo, plenamente conectado com o seu tempo. Fiquei extasiado com a letra de "Carioca", uma descrição poeticamente profusa da cena urbana do Rio de Janeiro, capturada pelo olhar do eu poético quase epicurista, expectador e crítico. De fato, eu me tornara muito admirador da obra de Chico Buarque.
Durante os últimos 18 anos, testemunhei, devotadamente, cada uma das raras turnês de Chico Buarque. Recordo-me da primeira apresentação a que assisti, em dezembro de 2006, quando "Carioca" extasiou o público no Palácio das Artes em Belo Horizonte. Em 2011, no mesmo santuário da cultura mineira, testemunhei o início da turnê "Na Carreira". Em 2017, mais uma vez em Belo Horizonte foi o palco do primeiro concerto de uma turnê buarqueana. As canções de "Caravanas" foram entoadas por Chico numa noite mágica de 13 de dezembro. Após o espetáculo, um instante eternizado: uma foto ao lado de Chico Buarque, um diálogo fugaz, porém imortal, sobre Guimarães Rosa e a essência da mineiridade.
Em 2022, ele lançou a turnê "Que tal um samba?", iniciada, claro, em Belo Horizonte. O show foi uma explosão de poesia e política para “espantar o tempo feio”, com Chico e Mônica Salmaso dividindo o palco de maneira magistral. Assisti à apresentação em 6 de outubro no Minascentro, e foi como se o tempo parasse. A voz potente de Salmaso e a poesia de Chico se entrelaçaram sublimemente em harmonia luminosa. Pensei: “Que sorte do Brasil ter o Chico Buarque”, e emendei o pensamento: “Que sorte a minha ter tido aquela aula de História na quinta série”.
A jornalista Mariana Peixoto descreveu com poética precisão a essência transcendental daquela última apresentação de Chico Buarque que testemunhei: "Bissexto no palco e autor de obra poética que cala fundo no Brasil dos últimos 50 anos, a cada nova turnê Chico Buarque fala de si e de todos. A catarse coletiva provocada pela passagem de 'Que tal um samba?' por Belo Horizonte reuniu isto tudo: Brasil, Chico e cada um dos Joãos e Marias da plateia, cada qual com sua própria história com a obra do cantor e compositor."
Hoje, ao celebrar 80 anos de vida, tenho algumas certezas: a primeira é que Chico não envelheceu repetindo os velhos sucessos, refém de um passado glorioso. Ele soube usar o tempo a seu favor, cantando a poesia da juventude quando jovem, lutando pela liberdade durante a ditadura, e hoje, cantando a senioridade, falando de amor e denunciando as injustiças com a mesma paixão e poesia de sempre. É fascinante ver um artista que cria com tanta inteligência e talento. Enquanto tantos músicos consagrados cantam as mesmas músicas dos seus 20 anos, Chico nos presenteia com novas obras, sempre atuais e altamente relevantes. Quando Bob Dylan ganhou o Nobel eu disse a alguns amigos: "Se Chico Buarque fosse europeu ou mesmo estadunidense, já teria ganhado um Nobel de Literatura há muito tempo." O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, expressou a mesma visão publicamente. Durante a conferência inaugural da Corte Interamericana de Direitos Humanos, realizada na sede do tribunal em São José, Costa Rica, em 29 de abril, Barroso afirmou que Chico Buarque teria recebido o Prêmio Nobel de Literatura antes de Bob Dylan, não fosse a barreira da língua portuguesa.
Chico não é apenas brasileiro, como a sua obra é também indissociável do Brasil e da língua portuguesa. Apenas o Brasil, com toda a sua riqueza cultural e suas infindáveis contradições, poderia produzir um Chico Buarque. Ele é o mais universal dos brasileiros, percebe o mundo a partir daqui, interpreta a vida através de suas brasileiras percepções universais.
A obra de Chico Buarque pulsa com a vitalidade de alguém que compreende que a arte transcende limites temporais. Chico desafia o tempo e seu legado continuará a inspirar gerações e gerações. Porque ele não é apenas um dos maiores, senão o maior nome da história da música brasileira; não é apenas um dos grandes literatos de nosso tempo. Chico é a própria história em movimento, o intérprete da vida em toda a sua dimensão de ternura, angústia, contradição e complexidade. Chico faz 80 anos hoje, mas Chico é eterno. Continuará vivo pelos séculos vindouros, enquanto houver Brasil, enquanto subsistirem sentimentos.
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