Enquanto somos contemporâneos da tragédia climática no Rio Grande do Sul e recentemente da extrema epidemia de dengue, vale a pena ressaltar um caos ambiental e sanitário que ajudou a varrer do mapa um povoado inteiro de Itaguara, há aproximadamente cem anos. Numa localidade dentro das regiões do Veludo (tríplice divisa de Piracema, Carmópolis e Itaguara) existia uma pequena povoação, com sua ponte de pedra e madeira sobre o pio Pará, que era uma das principais ligações entre o Japão Grande (Carmópolis) e a Conquista (Itaguara). Segundo a tradição local, este arraial extinto contava até com comércio e igreja. Hoje é uma grande mata ciliar beira-rio.
Vale ressaltar que não sou perito em história nem arqueólogo, no entanto meus antepassados são da região e costumo pescar com frequência por lá. Também sou observador e escutador. Nesta localidade se misturam as águas dos rios Pará e Paracatuzinho. Nas estórias locais sobre heranças, vendas de propriedades dos antepassados, como chegaram ou obtiveram suas moradias atuais: fica nítido um leve movimento migratório de famílias inteiras despovoando as margens do rio para se reinstalarem alguns quilômetros dali, nas serras do Rio do Peixe (atual Piracema), formando o distrito hoje conhecido como Quilombo.
Um pouco mais da metade dos moradores do Quilombo não são totalmente originários dali, mas sim descendentes dos antigos ribeirinhos e da pequena vila da Ponte sobre o rio Pará. No histórico de povoamento do Quilombo: há mais de cem anos só viviam duas famílias ali, conhecidas popularmente como os Nenecas e os Rumãos, com suas fazendas e propriedades, ou seja, o distrito era bem menor, praticamente não existia. Motivos mais prováveis para abandonarem o antigo Arraial da Ponte: a malária e o progresso rodoviário.
Voltemos, então, pelo tempo: as margens do rio Pará, patrulhadas de zum-zum-em-zum-zum pela praga Anopheles ( mosquito-prego), definiam o território do inferno tropical da malária, mesma doença chamada de “maleita” no livro Sagarana, de Guimarães Rosa: ao narrá-la no Pará dos Vilelas, quando ele exercia a medicina em Itaguara.
Conforme as sucessivas epidemias avançavam na década de 1920 em diante, os sofrimentos e as perdas de um povo foram amaldiçoando aos poucos aquelas terras, cada vez mais associadas ao trauma e terror da peste. Como capinar um canteiro-de-cana, no sol a pino, com fadiga, febre e uma dor que parece percorrer até os ossos? Criancinhas ridicularizadas na escola por causa de seus esqueletos em pele, seus olhares amarelos e vômitos repentinos. Idosos, se ainda houvesse algum, estariam anêmicos, convulsionando com enxaqueca interminável. Como ficar livre deste tormento endêmico se ainda não haviam desenvolvido antibióticos e a cloroquina naquela época?
Do local se observa algumas ruínas, principalmente da antiga ponte de madeira e pedra que foi umas das principais ligações entre Itaguara e Carmópolis até a construção da Fernão Dias na décadas posteriores. Como diz uma moda de viola sertaneja: "Os caminhos mudam com o tempo (...)". Com isso, a quase 4 quilômetros dali, a rodovia federal então desviou toda a movimentação, comércio e escoamento para a nova e gigantesca ponte de concreto – totalmente imune as cheias do rio e as queimadas de agosto. Demais alicerces de propriedades restantes, hoje parcialmente soterrados e escoltados silenciosamente pela fauna e flora ciliar do rio.
A velocidade da informação e do progresso tecnológico, sem responsabilidade, aceleram essas mudanças que não são mais novidades nas principais mesas de debate do Brasil e do resto do mundo. É inquestionável. Cabe à humanidade lutar contra a natureza ou aceitá-la. Lutar seria o mesmo que passar um camelo pelo buraco de uma agulha. Resta, então, a aceitação, que não é um modo de omitir, mas sim de cuidar, precaver e adaptar: planejando conscientemente a tecnologia para superar os desafios de viver, com respeito, neste abundoso e ímpar planeta Terra.
Minha sugestão de violeiro e escritor para a temática deste texto: ouvir a moda de viola “Peão”, de Almir Sater, na voz e viola de Eduardo Costa, e ler os contos itaguarenses “Sarapalha” e “A Volta do Marido Pródigo”, do livro Sagarana, de Guimarães Rosa. A arte nacional também é nossa, local e caipira. O sertão é logo aqui.
Comments