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O silêncio e as palavras: a agonia do diálogo na era da discórdia


Alisson Diego

 

Imagem: Dall-e.
Imagem: Dall-e.

Vivemos uma era bastante curiosa. Nunca estivemos tão conectados, imersos em redes que prometem um fluxo incessante de vozes e ideias. Entretanto, por baixo dessa superfície ruidosa, uma forma de silêncio parece se alastrar: o silêncio do diálogo autêntico.


Chamo de diálogo autêntico aquela conversa que busca compreender racionalmente os argumentos da outra pessoa e não apenas refutá-los passionalmente. Aquela troca que arrisca transformar-nos a nós mesmos, não só confirmar nossas crenças e valores.


Tem-se tornado, em nosso tempo, um refrão melancólico ouvir que o diálogo, especialmente na arena política, virou um artigo de luxo, talvez até mesmo uma interface impossível. "Com fulano não se conversa", "com aquele grupo é perda de tempo". Congelamos o outro em caricaturas e nos fechamos em nossas próprias certezas vãs. A verdade é que a "impossibilidade" de qualquer diálogo nasce, muitas vezes, de uma decisão prévia, de uma recusa em verdadeiramente escutar.


O filósofo Hans-Georg Gadamer (1900-2002) sugeria que entender o outro exige uma "fusão de horizontes". Ou seja, não se trata de um processo passivo; mas antes requer a coragem de expor nossas próprias vistas e a humildade de reconhecer que nossa perspectiva não esgota a realidade. O verdadeiro diálogo pede essa abertura de mente e, talvez o mais difícil, de espírito.


Essa compreensão filosófica ressoa profundamente com minha própria experiência de vida. Se olho para trás, para minha jornada no serviço público, o fio condutor que mais me orgulha ter preservado é justamente essa disposição para o diálogo. Não como um talento especial, mas como uma disciplina diária, um esforço consciente para encontrar o humano no interlocutor, mesmo quando as divergências pareciam intransponíveis abismos.


Em cada função que exerci na vida pública, a tarefa era a mesma no fundo: ouvir ativamente, buscar pontos de contato, construir pontes. A política, afinal, não deveria ser apenas o gerenciamento de conflitos, mas a arte de tecer o comum a partir do diverso. Como nos lembra Hannah Arendt (1906-1975), a política floresce na pluralidade, na ação conjunta de pessoas que são iguais em sua capacidade de agir e falar, mas únicas em suas perspectivas.


Claro, nem sempre o consenso é possível, ou mesmo desejável (por exemplo, não se deve toletar a intolerância, aqueles que defendem desumanidades). A democracia saudável, como argumenta Chantal Mouffe (1943-), vive de um certo "agonismo", uma tensão criativa entre projetos distintos. Mas mesmo no dissenso, há um patamar que não pode ser perdido: o do respeito mútuo. Sem ele, a política degenera em hostilidade pura, e a democracia se esvai. É precisamente essa convivência na divergência que nos desafia.


Essa valorização da diversidade encontra um fundamento robusto na filosofia política de John Rawls (1921-2002). Ele argumentava que o "fato do pluralismo razoável" – a existência de múltiplas visões de mundo, filosofias e doutrinas morais que são compatíveis com a razão humana – não é uma falha das sociedades livres, mas uma de suas características permanentes e inevitáveis. A grande questão para a democracia, segundo Rawls, não é eliminar essa diversidade, mas encontrar "termos justos de cooperação" que cidadãos livres e iguais, com suas diferentes convicções, possam razoavelmente aceitar. O diálogo torna-se, assim, a ferramenta indispensável para construir esse "consenso sobreposto", essa base comum que sustenta a vida pública apesar das diferenças.


A teoria, no entanto, por mais potente que seja, ganha vida mesmo é nos exemplos concretos. A história política brasileira nos oferece algumas lições luminosas. Pensemos em Juscelino Kubitschek. Seu governo, que marcou uma era de otimismo e desenvolvimento, foi também um exemplo notável de composição. JK teve a habilidade de reunir em seu ministério e em sua base de apoio figuras de origens e pensamentos notavelmente distintos, muitas vezes vindas de campos políticos que, à primeira vista, pareciam irreconciliáveis. Ele compreendia que governar um país da grandeza e da complexidade do Brasil exigia mais do que a imposição de uma única visão; demandava a orquestração de muitas vozes. Sua capacidade de mobilizar um Congresso fragmentado, incluindo setores da oposição, para aprovar projetos ambiciosos como o Plano de Metas e a construção de Brasília, foi fruto direto dessa crença genuína no diálogo


Décadas depois, esse mesmo espírito de articulação se manifestaria em outro momento crucial. Tancredo Neves, mestre na arte da conciliação, nos daria uma lição inesquecível em 1985. No delicado processo de transição democrática, sua eleição indireta no Colégio Eleitoral só foi possível porque ele soube conversar para além de seu próprio campo. Tancredo construiu a Aliança Democrática, mas sua vitória foi selada por votos que vieram de adversários históricos. O apoio de figuras como Magalhães Pinto, Sarney e Aureliano Chaves, vindos do campo que sustentara o regime anterior, foi emblemático: o reconhecimento de que, em nome da redemocratização, era preciso superar barreiras e encontrar um terreno comum. Isso não foi fraqueza; foi a mais alta expressão da política como construção racionalmente coletiva.


O que aprendemos com homens como JK e Tancredo, e com pensadores como Rawls? Que o diálogo, na política, não é sinônimo de ingenuidade ou de renúncia a princípios. É, sim, a manifestação de inteligência estratégica, de compromisso com a governabilidade e, acima de tudo, de profundo respeito pela própria essência da democracia. É a ferramenta que nos permite navegar a complexidade humana e construir um futuro compartilhado, mesmo quando discordamos sobre o melhor caminho para chegar lá.


Nestes tempos de vozes entrincheiradas e pontes dinamitadas, a recusa ao diálogo é mais que uma opção política pela ignorância; é uma sentença de isolamento e irrelevânciaÉ escolher o monólogo estéril em vez da sinfonia complexa da vida pública. Abdicar da conversa é entregar os pontos à intolerância, é desistir da própria possibilidade de construir um futuro que não seja a mera repetição dos nossos piores impulsos. A política de verdade, aquela que transforma, dignifica e edifica, exige a coragem do encontro, a persistência da escuta e a aposta inabalável na palavra como o mais poderoso instrumento de civilidade. Ignorar isso é um passo em direção ao abismo social. O diálogo não é somente um componente político desejável; ele é o próprio oxigênio da democracia. Sem ele, simplesmente, não respiramos.

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