Considerando esta temática de pesquisa no campo do patrimônio cultural, mais especificamente, sobre referências e bens culturais de natureza imaterial em Minas Gerais, me emociona e encanta compartilhar com vocês algumas poucas informações sobre esta prática cultural relacionada ao Congado, Congadas, Reinados e Festas de Nossa do Rosário. Ainda que apenas de forma teórica e descrita de maneira ampla, as características e dados apresentadas denotarão a diversidade, riqueza, complexidade e importância que devemos atribuir aos detentores e realizadores envolvidos com estes ritos de fé e devoção.
O Candombe seria o ancestral mítico do Congado, elo perdido de ligação entre o culto jeje-nagô e o catolicismo rústico, conforme ressaltou Silva. O Candombe é, entre os grupos, o mais antigo e o mais banto, por isso é considerado o pai de todas as guardas, que nasceram em diferentes épocas: primeiro foi o Congo, depois o Moçambique, o Catopê e as demais. Ressalta-se que há variantes deste mito de origem de acordo com cada grupo.
A palavra Candombe significa dança sagrada, e nela são lembrados os antepassados: ali são tocados os tambores antigos e sagrados (Santana, Santaninha e Chama) e Zâmbi (Deus Criador) está com eles. Os tambores geralmente são rústicos, com diferentes tamanhos e funções rítmica. Os candombeiros completam a festa com seus cantos enigmáticos, constituídos segundo uma linguagem simbólica que remete aos mistérios sagrados. O Candombe não desfila (não sai em cortejo ou procissões), deslocando-se apenas em grandes ocasiões, para tocar na casa do Rei ou da Rainha Conga.
Um mito de origem dessas manifestações culturais recorrente entre os candombeiros de Minas Gerais diz que, nos tempos do cativeiro, Nossa Senhora do Rosário havia aparecido nas águas do mar. Os brancos, em cortejo, foramà praia para tentar atrair a Santa, mas ela não se mexeu. Então, foi a vez dos escravos africanos, que com seus rústicos tambores de pau oco cantaram e dançaram para Nossa Senhora. Ela veio se “achegando devagarinho” e se assentou sobre o tambor maior.
As Congadas (Congado e Reinados) são manifestações culturais que ocorrem no Brasil desde a chegada dos negros escravizados que habitavam, em grande número, Congo e Angola. Recriadas em território brasileiro, elas são constituídas por cortejos com danças coletivas onde os participantes, cantando e dançando, representam, basicamente, três temas: a vida de São Benedito, o encontro de Nossa Senhora do Rosário submergida das águas e a luta de Carlos Magno contra as invasões mouras.
A manifestação possui forte relação com o processo de escravização e com o culto católico à Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Santa Efigênia. Outros santos, porém, podem compor o repertório devocional e festivo, peculiaridade que pode variar de região para região e até mesmo entre os grupos de congados (ternos, bandas, guardas, cortes – essa nomenclatura é alterada a depender da região). No entanto, o culto a Nossa Senhora do Rosário é uma característica recorrente que perpassa o imaginário dos detentores desta prática cultural.
O folclorista e antropólogo mineiro Saul Alves Martins, que se dedicou à pesquisa do tema, identificou sete estilos de guardas inerentes a esta manifestação cultural: o congo (ou congada), o moçambique, o catopé, o marujo (ou marujada), o caboclinho, o cavaleiro de São Jorge e o vilão, se diversificando conforme a cidade ou até mesmo região onde se realizam as Festas. Essas guardas, formadas pelos grupos de cantadores e dançadores, realizam seus cortejos pelas cidades lideradas pelos capitães, enquanto cantam e dançam em louvor a seus respectivos santos de devoção e, ao mesmo tempo, realizam a escolta de seus reis e rainhas congos. Elas têm uma função simbólica e narrativa no ritual da Festa de Nossa Senhora do Rosário, cujas competências são definidas pelos trajes, adornos e cânticos característicos. Destaca-se que o Reinado é um dos componentes das Congadas, e refere-se à coroação de Reis e Rainhas, ou seja, à constituição de uma Corte.
As Congadas são, portanto, uma celebração de devoção, um ritual sagrado que festeja a vida e que se alargou no espaço e no tempo, ganhando devotos em quase todo o território de Minas Gerais. Segundo Santos, “[...] no centro-oeste mineiro, os festejos recebem o nome de ‘reinado’, em outras regiões são conhecidos por ‘congadas’ e ‘congados’, noutras por ‘catupé’, e, ainda, como ‘moçambique’”. Tal pluralidade – que é proveniente das nomenclaturas, mas também da prática – é o que caracteriza um complexo campo de pesquisa e análise dessa forma de expressão. Dessa forma, a adoção pela terminologia “congadas segue a escolha realizada pelo IPHAN, até o ano de 2022, no que concerne ao processo de registro denominado “As Congadas de Minas”.
O período festivo das congadas em Minas Gerais ocorre praticamente em todo o ano. Inicia-se no mês de janeiro, com as homenagens a Chico Rei, considerado por alguns historiadores como responsável por introduzir na antiga Vila Rica do Ouro Preto (hoje, apenas Ouro Preto), no final do século XVIII, a tradição do culto aos santos pretos.
É possível encontrar algumas especificidades que permitem diferenciar os grupos de congadas: Bento indica que “No terno de Catupé os integrantes dançam com os pés, mãos e costas, usam cerca de 6 caixas e dufo(pandeiro artesanal)”, ao passo que “[...] no terno de Moçambique os dançadores sambam tocando patagunga e gunga (no tornozelo)”. Ainda de acordo com Bento, o Capitão de qualquer terno é o responsável pelas determinações que afetam todo o conjunto de dançadores: é ele a pessoa que normalmente é acessada pelos membros da composição humana, guiando o terno nas canções, dança e gestos.
As Congadas de Minas são um bem em processo de registro como patrimônio cultural imaterial do Brasil desde 2008 e a pesquisa para seu inventário foi dividida em duas etapas, incialmente. A primeira etapa consistiu no “Levantamento Preliminar” das Congadas de Minas, e ocorreu entre os anos de 2012 e 2013, com o objetivo de identificar e mapear as Congadas no estado. A segunda etapa do “Levantamento Preliminar” das Congadas de Minas ocorreu entre os anos de 2013 e 2014, com objetivo de aprofundar o mapeamento das Congadas de Minas iniciado em 2012, de modo a possibilitar a continuidade da Instrução Técnica de seu processo de Registro pela Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em Minas Gerais.
A metodologia adotada para a realização desteslevantamentos, dos quais participei como integrante da equipe técnica na consultoria da empresa Minas Cidades, foi a do Inventário Nacional de Referências Culturais(INRC). Para a realização da segunda etapa, a Superintendência do IPHAN em Minas Gerais contou ainda com o apoio do Grupo de Trabalho (GT) Congadas de Minas, formado pelo IPHAN/MG em abril de 2013, composto por pesquisadores dedicados à temática e criado com o intuito de garantir a ampliação dos debates sobre o processo de patrimonialização dessa expressão cultural. Participei deste GT, no qual foram estabelecidos os recortes territoriais e temáticos que orientariam as demais etapas do Registro.
Os resultados preliminares resultaram em 796 municípios contatados com êxito (dentre os 853 existentes no estado de Minas Gerais), tendo sido a prática relativa às Congadas identificada em 327 deles. Em 477 não houve menção da ocorrência de manifestações relacionadas às Congadas e em outros 49 municípios não se sabe se elas existem ou não. Identificou-se também a ocorrência de 322 municípios com festividades, que podem não ser organizadas pelos detentores, mas das quais os grupos são convidados a participar: destacam-se, em especial, as festas em honra de Nossa Senhora do Rosário. Em 308 municípios, distribuídos em todo o estado de Minas Gerais, registrou-se a ocorrência de guardas, ternos, bandas, cortes ou grupos.
Já no ano de 2019, serviços especializados foram contratados pelo IPHAN para a produção de documentação textual e audiovisual para finalizar a instrução técnica do processo de registro, considerando a diversidade e a vasta territorialidade abrangida pela festa.No ano de 2022, foram realizados três seminários no total, abordando a apresentação das equipes e dos mecanismos da Política de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial; diálogo sobre os Livros de Registro e o título do bem para o Registro; assim como a devolutiva sobre a elaboração do dossiê de Registro.
Neste sentido, espera-se que esta belíssima e admirávelmanifestação cultural, que inclusive está presente na cidade de Itaguara/MG, possa receber este título e reconhecimento nacional como um patrimônio cultural imaterial, neste ano de 2023.
** Marina Vilaça é mestre em Patrimônio Cultural, Paisagens e Cidadania, especialista em Patrimônio Cultural na Contemporaneidade, bacharel e licenciada em Geografia e Meio Ambiente. Analista ambiental, com experiência em projetos socioambientais, patrimônio cultural e avaliação de impacto. Atualmente é responsável técnica na empresa Culturas Ambientais. consultoria.culturasambientais@gmail.com / @culturasambientais. Escreve sobre Meio Ambiente e Patrimônio Cultural
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